O Supremo Tribunal Federal (STF) começou nesta quarta-feira a decidir o desfecho de um impasse bilionário entre a União e empresas em torno da retirada do ICMS da base de cálculo do PIS/Cofins, um tributo federal.
A alteração da regra foi decidida pela Corte em 2017, mas o governo tenta limitar os efeitos da medida que, na prática, reduz o montante sobre o qual o imposto incide.
A mudança no cálculo é positiva para contribuintes, mas preocupa a equipe econômica uma possível onda de ações na Justiça que pode fazer com que o Fisco tenha que devolver às empresas tributos cobrados antes da mudança, a depender dos efeitos retroativos.
Essa conta poderia chegar a R$ 258,3 bilhões, segundo cálculos da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN).
A primeira e única a votar até o momento foi a ministra Cármen Lúcia, relatora do caso. Ela entendeu que a decisão deve ter efeitos a partir da data do julgamento de quatro anos atrás — 15 de março de 2017 — com a exceção das ações judiciais e administrativas que já haviam sido protocoladas.
No recurso apresentado ao Supremo, a União pede para que os efeitos dessa decisão só passem a valer a partir do fim do julgamento iniciado nesta quarta, sem exceções.
Nos bastidores do Supremo, a expectativa é que a posição de Cármen, vista como ponderada, seja adotada pela maioria dos ministros, sem muitas divergências.
No fim de abril, o ministro da Economia, Paulo Guedes, se reuniu com o presidente do STF, ministro Luiz Fux, para reforçar a necessidade de que haja a chamada modulação — ou seja, uma restrição dos efeitos da decisão a casos novos. Nas contas da equipe econômica, o impacto seria de R$ 245 bilhões.
Vale lembrar que, para que haja a modulação dos efeitos, é preciso que oito ministros acompanhem a tese vencedora, embora exista uma discussão jurídica de que a medida seja possível com a partir de seis votos.
Ações com impacto nas contas públicas
O julgamento é o caso de maior destaque dentro de uma série de decisões do Supremo com impacto significativo nas finanças do país que entraram no radar da equipe econômica.Chegou a ser apelidado por advogados de “tese do século”, devido ao seu potencial bilionário.
Também estão no radar decisões do STF que implicam em despesas, como a que determinou, no fim de abril, que o governo institua renda básica para os brasileiros em situação de pobreza e extrema pobreza a partir de 2022.
O ministro Marco Aurélio Mello concedeu liminar para que a União adote medidas necessárias para a realização do Censo Demográfico ainda neste ano.
A professora da FGV Direito São Paulo Tathiane Piscitelli afirma que o governo precisa comprovar os cálculos dos impactos fiscais das medidas. Para ela, não está claro como a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) fez a conta do impacto do julgamento do PIS/Cofins.
— O Supremo pode considerar o impacto financeiro de uma decisão e esse impacto pode ser um argumento válido nas decisões. Só que tem um critério para que isso seja considerado válido. É preciso que o argumento seja sólido. A Fazenda Pública deve ser capaz de demonstrar que de fato aquela decisão vai se transformar num impacto tão significativo para os serviços públicos — afirmou.
Guedes conversou com Fux sobre o tema
Nos bastidores, integrantes do Ministério da Economia têm argumentado sobre a necessidade de os ministros do STF ficarem atentos à crise nas contas públicas nas suas decisões.
Foi com esse intuito que o ministro Paulo Guedes quis incluir o presidente do STF no Conselho Fiscal da República, órgão proposto no fim de 2019 para acompanhar as contas da União.
O atual presidente do STF, ministro Luiz Fux, pediu a Guedes para não participar do órgão por entender que ele tomaria decisões que poderiam ser analisadas pela Corte.
No STF, ministros têm dito reservadamente que o “pragmatismo” do governo não pode se sobrepor a uma das partes do processo.
O ministro Ricardo Lewandowski, por exemplo, já se queixou no plenário de que o governo usa argumentos considerados por ele ad terrorem — para impressionar por meio do terror — com base no impacto dos processos sobre as contas públicas.
Para a consultora econômica Zeina Latif, assim como o Congresso precisa analisar o impacto econômico dos projetos, isso precisa ser levado em consideração pelo STF nos julgamentos:
— Porque existem regras para o nosso Orçamento, porque existe o teto de gastos, a Lei de Responsabilidade Fiscal. São argumentos suficientes para o Supremo, quando decidir, entrar nesses temas e avaliar que tem consequências econômicas que prejudicam gerações futuras e que também podem forçar o Executivo a cometer um crime fiscal.
Ações somam R$ 2 trilhões
Em todas as esferas da Justiça, o total de ações contra a União somou R$ 2 trilhões no ano passado, uma redução de 8,5% ante 2019.
Os valores efetivamente pagos pela União seguem em alta desde 2013. No ano passado, foram pagos R$ 51,5 bilhões, o que corresponde a 2,6% da despesa primária total.
— É papel do STF zelar pelo cumprimento da Constituição e das leis. Em relação às instituições e regras fiscais, como a LRF, por exemplo, sempre que o STF foi acionado, ele se posicionou na direção da responsabilidade e do equilíbrio — diz o economista e professor do IDP José Roberto Afonso.
Reforma tributária 'silenciosa'
Em outra frente, especialistas alertam para o fato de que o julgamento iniciado nesta quarta ser mais um exemplo de como o STF tem atuado para fazer uma “reforma tributária silenciosa”, enquanto a do governo está travada no Congresso.
Para o advogado Gustavo Brigagão, sócio-fundador do Brigagão, Duque Estrada Advogados, o problema é mais grave por causa do plenário virtual, que se tornou regra na pandemia.
— Isso fez com que afirmássemos que há uma reforma tributária sendo feita, mas pelo STF. O Tribunal vem reformando radicalmente a jurisprudência que, por tantos anos, norteou o contribuinte na sua relação com o Fisco — observa.
Um exemplo citado é o fato de os ministros precisarem decidir a modulação dos efeitos de um julgamento de agosto do ano passado, que decidiu que é constitucional a cobrança de contribuição previdenciária sobre o terço de férias.
Falta definir a partir de quando poderão ser cobrados os valores retroativos, o que pode conflitar com uma decisão anterior do Superior Tribunal de Justiça (STJ). A cobrança poderia render uma multa de R$ 80 bilhões para empresas.
No último dia da votação no plenário virtual, o ministro Luiz Fux fez um pedido de destaque para levar o caso para o julgamento presencial.´
‘Impacto destruidor’
Para o tributarista Tiago Conde Teixeira, sócio do Sacha Calmon-Misabel Derzi Consultores e Advogados, esse exemplo denota a necessidade de se recalibrar o sistema do plenário virtual:
— Casos graves de alterações jurisprudenciais consolidadas, como o terço de férias, causam um impacto econômico no empresário que é destruidor. Mudar a jurisprudência é parte do jogo democrático, mas no princípio da garantia de confiança no judiciário, o STF tem que buscar preservar situações anteriores e fazer valer para dali adiante.
O advogado diz que, desde o início da pandemia, analisou 52 casos tributários de repercussão geral. Desses, 71% foram favoráveis ao Fisco contra os contribuintes. Em dez houve reversão do entendimento que a Corte considerava válido antes.
Para Roberto Duque Estrada, também sócio-fundador do Brigagão, Duque Estrada Advogados, a avaliação é de que o STF está tomando para si uma função que nunca teve, legislando sobre temas tributários pela inércia do Congresso.
— O Supremo está ocupando espaços vazios, exercendo, de forma oblíqua, a função legislativa que o Congresso deveria exercer em uma reforma tributária. E o Congresso segue parado: não se articula com a sociedade que representa, nem com os entes da federação, sendo incapaz de construir uma reforma de consenso – avalia.
O tributarista Daniel Corrêa Szelbracikowski, sócio da Advocacia Dias de Souza, observa que o quadro atual atrasa ainda mais a reforma tributária no Congresso:
— Como votar uma reforma tributária sem antes definir e fazer uma reforma administrativa? A reforma tributaria está falando de obtenção de receitas, mas não posso olhar pra esse lado de receitas sem olhar para o lado das despesas. Eu só posso dimensionar as receitas se eu tiver bem dimensionadas as despesas que o governo terá no futuro.