A pandemia do novo coronavírus e a queda livre da atividade econômica brasileira devem fazer com que os pedidos de recuperação judicial de empresas alcancem, neste ano, o maior patamar da história. Especialistas estimam que de 2 mil a 5 mil negócios devem pedir socorro à Justiça para evitar um pedido de falência.
Mesmo que o realizado seja o piso das estimativas, ainda assim será um número superior ao recorde atual de 1.863 casos, registrados em 2016, e bem acima do verificado no ano passado, quando 1.387 empresas solicitaram proteção da Justiça para reorganizar os negócios e evitar o fechamento.
A onda de pedidos de recuperação está apenas no início, dizem os especialistas, e deve afetar em particular os setores que mais sofreram até agora, como aviação civil e turismo.
O advogado Euclides Ribeiro, sócio da consultoria em reestruturação ERS, de São Paulo, prevê cerca de 5 mil pedidos de recuperação judicial no ano, com a possibilidade de alguns deles ficarem para 2021 por causa da falta de estrutura do judiciário para lidar com a avalanche de pedidos.
Mudança brusca
Para Ribeiro, mais grave que uma recessão aguda como a que se avizinha — o próprio governo Jair Bolsonaro espera uma retração de 4,7% da economia em 2020 —, é a reversão brusca de expectativas causada pela chegada da pandemia do vírus.
— No início do ano, os empresários previam que a economia brasileira iria crescer mais de 2% e, por isso, investiram. Agora, terão muitas dificuldades de caixa — diz o especialista.
O segundo semestre de 2020 deve ver a curva de pedidos de socorro das empresas crescer rapidamente.
Os casos de recuperação judicial, que atualmente giram entre 100 e 200 por mês, devem chegar a 400 em agosto e ficar nesse patamar até dezembro, segundo levantamento da consultoria Alvarez & Marsal, que prevê até 2.500 pedidos de proteção judicial em 2020.
As empresas costumam ter caixa para aguentar até três meses após um choque como a pandemia, disseminada pelo país a partir de março, diz Leonardo Coelho, sócio-diretor da consultoria. Além disso, medidas do governo federal, como as reduções salariais permitidas pela MP 936 e novas linhas de crédito dos bancos ajudaram a “achatar a curva” dos pedidos até agora.
— Daqui para frente, os números podem subir violentamente caso a pandemia avance e medidas mais restritivas de isolamento social sejam tomadas — diz Coelho, que prevê mais pedidos de recuperação judicial em estados onde as restrições à circulação demorarão mais para serem abolidas por causa do alto número de infectados pela Covid-19, como São Paulo e Rio de Janeiro.
Estados como Paraná e os da região Centro-Oeste, dependentes do agronegócio, têm empresas mais bem preparadas para enfrentar os efeitos da pandemia.
Ensino privado
Uma particularidade da crise atual é que alguns setores são muitos afetados e outros ficam de fora, segundo avaliação de Salvatore Milanese, da consultoria em reestruturação Pantalica, que prevê mais de 2 mil pedidos de socorro em 2020.
O apuro será extremo em cadeias produtivas dependentes de pessoas em movimento, como aviação civil, turismo e automobilística, que vão precisar mudar a maneira de ganhar dinheiro para sair do atoleiro.
Em condição um pouco melhor estão construção civil e varejo, cujos negócios podem voltar a ser o que eram antes da crise sem maiores percalços. O risco é baixo nas cadeias produtivas que seguem com demanda elevada mesmo na crise, como as das indústrias alimentícia e farmacêutica.
O ensino privado já dá sinais de sofrer com a crise. Na semana passada, a Universidade Cândido Mendes pediu recuperação judicial. Um dilema do setor é como lidar com custos fixos, como aluguel e manutenção das estruturas de escolas, sem saber quando as unidades poderão voltar a ser usadas.
Pelo lado das receitas, as escolas vêm sendo pressionadas a dar descontos nas mensalidades por estarem dando aulas virtuais.
— O maior problema desses negócios será reduzir custos fixos em meio à crise — diz a advogada Laura Bumachar, sócia do escritório Dias Carneiro.
Trava financeira
Uma limitação aos pedidos de recuperação judicial é o alto custo da medida. Ao menos 5% do valor da dívida são gastos com honorários de advogados e custos processuais. Por isso, o pedido de proteção à Justiça faz sentido para empresas médias e grandes, diz Leonardo Nascimento, da consultoria em reestruturação de empresas Urca Capital.
Para ele, há um universo de 60 mil negócios com faturamento compatível aos custos de uma recuperação judicial.
— Milhões de pequenas e médias empresas cujas receitas sumiram com a crise estão desprotegidas — diz.
Essa questão dos custos tem gerado uma série de discussões sobre possíveis mudanças na atual lei de recuperação judicial, de 2005.
O projeto de Lei mais recente sobre o assunto, do deputado Hugo Leal (PSD-RJ), propõe um mecanismo específico para empresas que tiverem problemas de caixa em 2020 por causa da pandemia: antes de ir para a recuperação judicial, elas teriam 60 dias de carência para suspender pagamentos e negociar as dívidas com fornecedores.
Isso seria uma forma de evitar um volume muito grande de processos na esfera judicial.
— Sem mudanças na lei, vamos viver uma situação crítica como é hoje a da saúde pública — diz Thomas Felsberg, sócio-fundador do escritório de advocacia Felsberg.
Para Ricardo Jacomassi, sócio da consultoria em reestruturação de empresas TCP Latam, ampliar a lei de recuperação judicial pode ajudar a reconstrução das cadeias produtivas da economia.
— A salvaguarda judicial pode ser o único instrumento de empresas e seus credores para se acomodarem num cenário de forte retração da economia — diz Jacomassi, que prevê uma queda de 6,8% do PIB em 2020.
Para Renato Carvalho Franco, conselheiro da TMA Brasil, associação de consultorias em reestruturação de empresas, o Congresso deveria ter urgência na discussão.
— A situação de caixa de boa parte das empresas brasileiras é desoladora e vai continuar assim pelos próximos meses — diz.
Colapso em todos os setores
Fundada há 118 anos e pioneira no ensino superior de Economia, a Universidade Candido Mendes pediu socorro à Justiça no último dia 11 após ver o faturamento cair 30% em março e a inadimplência chegar a 25% por causa da pandemia.
Com dívidas de R$ 400 milhões, os percalços da Candido Mendes começaram a surgir no fim de 2014, quando a instituição atingiu o recorde de alunos: 24 mil. Desde então, a redução do Fies, crédito educacional do governo federal, levou à queda brusca no número de alunos, hoje cerca de 10 mil.
Uma das maiores empresas de ônibus do Rio de Janeiro, a Expresso Pégaso pediu recuperação judicial na semana passada com dívidas de R$ 49 milhões. A companhia, que tem cerca de 500 funcionários, viu sua situação financeira se agravar com a redução do número de passageiros.
Desde meados de março, a queda foi de 66% por causa da pandemia do coronavírus. Passou de uma média diária de 36 mil, antes da crise, para os atuais 12 mil por dia. Com isso, o faturamento diário caiu de R$ 115 mil para R$ 38 mil, retração de 66%.
Com dívidas em R$ 1,3 bilhão, o conglomerado João Fortes, que reúne 63 empresas, pediu socorro judicial em 27 de abril. Dono de uma das principais construtoras do Rio, o grupo começou a sentir percalços financeiros há sete anos com a onda de distratos imobiliários causados pela crise econômica de 2015-2016 e que também prejudicaram o balanço de concorrentes.
A retomada lenta da economia do Rio após as Olimpíadas de 2016 e o fechamento do comércio com a pandemia complicaram mais ainda o fluxo de caixa do grupo.