A diarista Cláudia de Jesus Melo Silva até estava animada. Depois de um ano parada por causa da pandemia, acreditava que com a volta das faxinas conseguiria neste fim de ano trocar a TV por outra maior, de 40 polegadas. Também planejava comprar uma fritadeira elétrica. Mas seus sonhos de consumo foram desfeitos.
Mãe de cinco filhos, ela e o marido, que faz bico de pintura, conseguem tirar cerca de R$ 2 mil por mês. Hoje não sobra praticamente nada para outros gastos além do básico. A conta de luz subiu para mais de R$ 400, antes era R$ 250. A última vez que comprou gás pagou R$ 120. No supermercado, onde deixava R$ 400 por mês, agora não gasta menos de R$ 600, mesmo trocando a carne pelo frango, o arroz pelo macarrão e o pão pelo cuscuz. “Leite quase não compro, tá muito caro, meus filhos tomam chá.”
O aperto inesperado provocado pela disparada da inflação pelo qual a família de Cláudia e milhões de outras passam terá impacto direto nas vendas do varejo no último trimestre. Com Black Friday e Natal, esse é o período mais importante do ano para o comércio. A piora que houve de janeiro para cá em vários indicadores - inflação, juros e renda - deve retirar R$ 44,7 bilhões das vendas do comércio varejista no último trimestre em relação ao cenário mais favorável projetado no começo do ano. É o que revela um estudo feito, a pedido do Estadão, pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) para avaliar quanto a deterioração da economia vai custar para o varejo neste fim de ano.
“A reversão do quadro foi muito rápida: a inflação do jeito que está e o remédio para combatê-la, que é o aumento dos juros, compõem um cenário de quarto trimestre preocupante para o varejo”, afirma o economista-chefe da CNC e responsável pelo estudo, Fabio Bentes.
Em janeiro, quando o mercado esperava inflação de 3,32% para o ano e juros básicos de 3,25%, segundo o Boletim Focus do Banco Central, e o economista projetava juros ao consumidor de 40,8% ao ano e aumento real de 2,4% na massa de rendimentos, a expectativa do comércio era faturar R$ 792 bilhões entre outubro e dezembro. O acréscimo era de 4,4% em relação a igual período de 2020.
Agora, porém, com a projeção de encerrar o ano com inflação beirando dois dígitos (9,80%), Selic a 9,25%, juros do crediário em 44% ao ano e queda real de 1,9% na renda, o economista calcula que a receita do último trimestre recue para R$ 747,3 bilhões, 1,5% menor do que no último trimestre de 2020.
“A disparada da inflação foi o principal fator para a piora das expectativas de vendas no quarto trimestre”, afirma Bentes. Nas suas contas, a inflação responde por quase 70% do que o varejo deve deixar de embolsar no último trimestre.
Ele lembra que o impacto negativo da inflação no consumo já tinha mostrado sua cara em 2015, quando o IPCA, a inflação oficial, fechou o ano em 10,67%. Esse é exatamente o índice de inflação acumulado hoje em 12 meses até outubro. Em 2015, as vendas do último trimestre caíram 6,9%, a maior retração para o período dos últimos tempos.
Marcela Kawauti, economista da Prada Assessoria, destaca que, além da inflação muito alta, o que piora as perspectivas para o consumo neste momento, é a sua composição. “A inflação está muito focada em alimentação, energia e combustíveis, itens básicos, com os quais as pessoas não têm margem de manobra, não há para onde correr”, observa.
Ela acrescenta que o mercado de trabalho não tem ajudado, porque o emprego não voltou para níveis pré-pandemia. Também os programas de transferência de renda têm menor impacto no consumo este ano e o clima de incerteza elevada breca os investimentos que poderiam impulsionar o emprego e os rendimentos.
Depois da inflação, a queda na massa real de rendimentos e a alta dos juros são fatores que devem afetar negativamente, porém com menor intensidade, as compras no fim de ano. O único dado positivo apontado pelo estudo da CNC é o maior fluxo de consumidores esperado nas lojas em relação ao inicialmente previsto. Isso decorre do avanço da vacinação. “A reabertura da economia deve evitar uma queda maior nas vendas”, afirma Bentes.
Apesar do revés esperado para o último trimestre, o economista pondera que o comércio ainda deve fechar o ano com crescimento de vendas comparado com 2020. Nesse caso, jogam a favor a base fraca de comparação, que foi 2020, e o aumento de vendas de 3,8% já registrado entre janeiro e setembro, segundo a pesquisa do comércio do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Plano de viagem adiado
Todos os anos o cabeleireiro Edgar Godoy, dono de um salão de beleza na zona norte da capital paulista, pega a estrada para passar as festas de fim de ano com os familiares que moram em Mato Grosso do Sul. Em 2020, ele não foi por causa da pandemia. Até seis meses atrás, tinha planos de retomar essa tradição. Mas decidiu cancelar a viagem. “Este ano está inviável, a gente não tem expectativa de ganho”, diz. Na viagem, só de ida, gasta cerca de 100 litros de etanol e o preço do combustível já subiu no ano, até outubro, 45,86%.
Com a reabertura do salão, em junho, Godoy chegou a ter um bom movimento, que se equiparou com o mesmo mês de 2019, antes da pandemia. Mas, de lá para cá, o faturamento não tem se sustentado. A receita mensal ainda está entre 40% e 45% menor em relação ao mesmo período pré-pandemia. “O pessoal está sem dinheiro e muitos clientes estão desempregados. Outros, de idade avançada, têm medo de vir ao salão.”
A queda no movimento ocorre mesmo sem o cabeleireiro ter aumentado os preços dos serviços prestados. Ele conta que faz dois anos e meio que não reajusta a tabela, apesar das pressões de custos de produtos e energia elétrica, por exemplo.
Na opinião de Godoy, a inflação alta tem sido o principal obstáculo à retomada do movimento normal do salão. “As pessoas têm optado por gastar com o essencial e vir ao salão acaba sendo supérfluo.”
A prova disso é que ele notou uma queda no fluxo de clientes na semana de pagamento. "A impressão que eu tenho é que a clientela primeiro vai às compras no mercado e, se sobrar dinheiro, gasta no salão de beleza."
Além de desistir da viagem, Godoy adiou o plano de reforma no salão e de fazer algum gasto pessoal. “Há tempos que não faço uma comprinha de roupa”, lembra. Atualmente, por causa da conjuntura, o cabeleireiro não tem expectativa de consumo. “Existe a necessidade, mas devido ao custo elevado e ao ganho baixo, a gente acaba meio deixando de lado os planos.”