A conta das dívidas e pagamentos adiados para tentar conter os impactos da crise do coronavírus começa a chegar ao caixa das empresas.
Com o faturamento ainda aquém dos níveis pré-pandemia e baixa demanda, empresários focam em controle de custos e novas renegociações de crédito para sobreviver até o ano que vem.
Além dos débitos que os bancos prorrogaram por até 180 dias –prazo que já começa a vencer a partir de outubro–, parcelas dos tributos adiados pelo governo e a volta do pagamento integral de aluguéis e da folha de salários também podem coincidir nos próximos meses e, segundo especialistas, aumentar os níveis de inadimplência.
Para as empresas que conseguiram pegar a primeira leva do Pronampe (Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte), entre junho e julho, os primeiros pagamentos devem começar a acontecer entre fevereiro e março do ano que vem, quando acabam os oito meses de carência do programa.
José Ernesto Betteli, responsável pela área financeira do Mumbuca Buffet, em Palmas, no Tocantins, conseguiu tomar recursos do Pronampe e a empresa deve ter fôlego para ir com razoável tranquilidade até o final deste ano.
“A boa notícia é que a maioria dos nossos clientes não cancelou os seus eventos, tendo apenas adiado para 2021. Continuamos a segurar custos e o Pronampe vai servir de capital de giro por um tempo”, disse.
Segundo a consultora de negócios do Sebrae-SP (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) Leidiane Lima, as medidas anunciadas pelo governo de acesso ao crédito para companhias, como o próprio Pronampe ou o crédito para pagar o salário de funcionários, foram positivas e ajudaram uma parcela importante de empresas a ter caixa para superar a crise, mas a maioria não terá recursos para cobrir as despesas dos próximos meses.
“A maior parte dos negócios não está com o caixa preparado. Todo o mundo fez o que pôde, mas muitos terão que partir para uma nova renegociação e, infelizmente, ainda vamos ver algumas empresas fechando as portas”, afirmou.
Mesmo aqueles que conseguiram se preparar ainda enfrentaram dificuldades. Gerson Higuchi, dono do restaurante Apple Wood, no Jardim Anália Franco, zona leste de São Paulo, afirma que se planejou com base em dois cenários: um otimista, que considerava que a pandemia terminaria entre junho e julho, e um pessimista, que projetava que a crise duraria até final do ano.
“Logo no começo eu já comecei a enxugar custos e cheguei a tentar quatro linhas de crédito. Negociamos boletos e aluguéis, aproveitei a deixa para adiar o pagamento de impostos, cancelei contratos com parceiros e prestadores de serviços e desliguei 15 das 20 pessoas da equipe. Também precisei afastar outras duas funcionárias essenciais, uma gestora e outra cozinheira, cujos cargos eu acabei assumindo”, afirmou.
Atualmente, Higuchi abre o salão do restaurante apenas entre sexta e domingo. Seu faturamento está entre 10% e 30% dos níveis pré-pandemia.
“Nós temos um planejamento para a fase de final de ano, mas se eu disser que consegui fazer caixa, é mentira. É tudo baseado em negociação de contas e o movimento não é constante: tem dias que faço R$ 10, outros que faço R$ 200. E eu já começo a ter receio de pegar crédito porque vou criar mais uma dívida. Pelo menos por enquanto, ainda que aos trancos e barrancos, a empresa está caminhando”, disse Higuchi.
Para Vilson Borgmann, presidente do Sipcep (Sindicato da Indústria de Panificação e Confeitaria no Paraná), a maior preocupação é com aqueles que pegaram crédito bancário, com prazos menores e juros mais altos do que aqueles oferecidos pelas linhas do governo.
“Muitos tomaram crédito bancário porque ou pegava, ou fechava. Nosso setor conseguiu se antecipar para a redução da jornada, o que ajudou a economizar, mas não existe sobra de dinheiro. Todos estão trabalhando no fio da navalha e o medo é que as prestações comecem a chegar e que não haja faturamento para cobrir esses gastos”, afirmou.
Segundo o 11º boletim de tendências do Simpi (Sindicato da Micro e Pequena Indústria) com dados do Datafolha, 38% dessas empresas afirmam que não têm capital suficiente para fazer o giro dos seus negócios —e o acesso a crédito ainda ainda afeta 8 em cada 10 micro e pequenas indústrias no estado de São Paulo.
Apesar de os últimos dados da Febraban (Federação Brasileira de Bancos) apontarem que as instituições financeiras emprestaram cerca de R$ 1,8 trilhão de 1º de março a 21 de agosto, incluindo contratações, renovações e suspensão de parcelas, o acesso a esses recursos foi diferente para os diversos setores da economia, o que deve afetar a obrigação de pagamentos de parte considerável das empresas.
“O crédito demorou a vir e, quando veio, não atendeu a todos que precisavam dos recursos", disse o presidente da Alshop (Associação Brasileira dos Lojistas e Shopping), Nabil Sahyoun.
Procurados, nenhum dos quatro maiores bancos do país (Banco do Brasil, Bradesco, Itaú e Santander) responderam até a publicação desta reportagem.
"A maioria das empresas ainda precisa buscar capital de giro, renegociar contas, dívidas vindouras e até o aluguel da loja. Mas com o faturamento ainda longe dos níveis pré-pandemia, a tendência é de aumento da inadimplência”, disse Sahyoun.
Isso inclui a quitação de tributos, apesar do impacto ser menor em alguns setores dado que o imposto é pago sobre o faturamento –que está baixo.
“Algumas empresas já começam a pagar os tributos adiados mas, em muitos casos, não há preparo do caixa. É claro que, se há restrição de recursos, aspectos sociais, como salários, precisam ser privilegiados. Mas é preciso lembrar que a obrigação tributária não é flexível e traz multa, juros e correção na cobrança”, disse o sócio tributarista da Natal e Mansur Advogados, Eduardo Natal.
Jorge Caetano, dono de dois restaurantes na zona norte da capital paulista, afirma que mesmo tendo reduzido seu estoque pela metade, precisou aproveitar todas as oportunidades que teve para não reduzir o quadro de funcionários.
“Reduzimos jornada e antecipamos férias. Também peguei o crédito para pagamento da folha e o Pronampe, o que deu um fôlego. Agora, se conseguirmos pegar mais uma leva de recursos, vamos usar para antecipar o pagamento do 13º [salário]”, afirmou.
Garantias
Segundo o assessor econômico da FecomercioSP (Federação do Comércio de Bens e Serviços de São Paulo) Guilherme Dietze, o que chega de crédito ao mercado tem ido principalmente para empresas que já começam a apresentar algum faturamento e possuem garantias.
“Mas existem discrepâncias. No varejo, por exemplo, uma coisa é falar do setor de vestuário, que não teve receita suficiente nos últimos meses. Outra coisa é o setor de móveis e construção, cujo desempenho foi muito bom ante a adoção do home office”, disse.
Para o vice-presidente da CDL (Câmara dos Dirigentes Lojistas) do Bom Retiro, Nelson Tranquez, o setor de varejo de roupas (que predomina na região) tem uma expectativa mais otimista em relação aos últimos meses do ano, quando ocorrem a Black Friday, o Natal e o Ano Novo.
“Esperamos que haja um crescimento das vendas até o final do ano, até porque o segundo semestre costuma ser melhor do que o primeiro. Estamos começando a retomar a produção e a venda gradativamente e já começamos a ajustar os custos aos pouquinhos”, afirmou.
Alguns segmentos específicos, como turismo e serviços, que sentiram forte impacto da crise e ainda não retomaram completamente as atividades, devem sofrer por mais tempo.
Associações Folha afirmam que ainda há uma grande preocupação em relação à sobrevivência dos pequenos negócios no médio e longo prazo.
Segundo João Emílio Padovani Gonçalves, gerente executivo de política industrial da CNI (Confederação Nacional da Indústria), parte dessa preocupação também vem da heterogeneidade da retomada.
“Falta sincronia. Muitas das empresas que querem ou precisam retomar agora não têm fornecedor ou porque fecharam ou porque ainda não estão em condições de produzir. Isso traz dificuldade de acesso à matéria prima e custos mais elevados para o setor”, disse.
Ainda de acordo com o levantamento do Simpi, 84% das micro e pequenas indústrias enfrentaram dificuldades com a alta de preços de matérias primas e insumos. Além disso, 30% das companhias afirmou que teve algum fornecedor que faliu ou entrou em recuperação judicial desde o início da pandemia.
Como mostraram reportagens da Folha nas últimas semanas, empresas de diversos setores se queixam de escassez ou reajustes excessivos de insumos. O aço, por exemplo, subiu até 35% desde julho, e uma nova alta é esparada para outubro.
A alta do algodão já ameaça deixar as roupas mais caras, e o setor calçadista teme que falte produto para as vendas de fim de ano.
Pesquisa do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) aponta que 47,6% das empresas consultadas relataram algum problema para obter insumos, matérias-primas ou mercadorias, principalmente devido a parada total ou parcial da produção no início da pandemia e a explosão de demanda com a volta gradativa das atividades.
No caso do material de construção civil, a falta de insumos atinge 55% das empresas do setor, e empresários já são obrigados a adiar a entrega de obras devido à escassez de itens como louça sanitária.
“Há uma sensação de que o cenário melhora em relação ao que era, mas ainda estamos longe do nível pré-pandemia. Com todo esse cenário de acúmulo de dívidas, a tendência é que vejamos níveis maiores de desemprego e um cenário ainda mais preocupante no final deste ano e no começo de 2021”, afirmou o presidente do Simpi, Joseph Couri.