O acesso das mulheres vítimas de violência à Justiça ainda é cercado de armadilhas, a despeito de um arsenal de leis de proteção, tantas vezes insuficientes para impedir a revitimização. No ano passado, ganhou notoriedade o caso da influenciadora digital Mariana Ferrer, alvo de humilhações e xingamentos durante uma audiência. O réu, denunciado por ela por estupro, foi considerado inocente.
Na última semana, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 5.096/2020, que proíbe, nas audiências judiciais, o uso de linguagem, informações ou material que ofenda a dignidade da vítima ou de testemunhas de crimes contra a mulher. Essa proposta, que institui a Lei Mariana Ferrer, e outras ligadas a ela, com finalidade semelhante, seguem para análise do Senado Federal.
Em novembro de 2020, a professora Bruna Barbieri Waquim, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, escreveu artigo sobre esse caso que dominou as atenções da comunidade jurídica. Ela comenta que o projeto de lei recentemente aprovado cria o tipo penal "violência institucional" para estabelecer o mínimo de dignidade às vítimas e testemunhas desses crimes nas audiências de instrução e julgamento.
"O apelido de Lei Mariana Ferrer foi dado em virtude da homônima de ação criminal, que foi publicamente insultada e humilhada pela acusação e, ao que parece, sem que os representantes do Judiciário e do Ministério Público fossem céleres e eficazes para reprimir tais excessos", comenta Bruna. Na ocasião citada, a jovem teve fotos expostas e comentários ofensivos feitos pelo advogado de defesa durante a audiência.
Projeto tipifica o óbvio, mas configura mudança paradigmática
A especialista explica que o Código de Processo Civil de 2015 já exige: "aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé". Contudo, há quem prefira "a espada da norma penal pendente sob seu pescoço, para que, de fato, se comporte com o mínimo de civilidade", nas palavras de Bruna Barbieri.
Para a professora, o projeto de lei tipifica o óbvio. "Não se pode permitir que o processo judicial seja uma nova fonte de violência contra a vítima", frisa a professora. Ainda assim, na opinião dela, sua aprovação configura um avanço na tentativa de assegurar a dignidade das mulheres no âmbito do Poder Judiciário.
"Essa é uma mudança paradigmática, a de exigir que todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no ato deverão zelar pela integridade física e psicológica da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, não mais se admitindo todo e qualquer expediente em nome da defesa do réu, muito menos os de caráter teatral e sensacionalista."
Violência histórica e estrutural
Segundo ela, o Direito e as instituições do Sistema da Justiça por muito tempo fomentaram e validaram várias formas de violência contra a mulher. "No período das Ordenações Portuguesas, se permitia que no Brasil o marido castigasse fisicamente a própria esposa. O homem traído era autorizado legalmente até a assassinar a mulher – ele também poderia assassinar o homem com quem ela o havia traído, mas as Ordenações faziam a ressalva 'desde que não fosse' um desembargador, fidalgo ou 'pessoa de melhor qualidade'."
No Código Civil de 1916, a esposa era apenas uma "figurante no lar", pois não tinha capacidade civil para administrar seus bens, exercer autoridade sobre os filhos, ingressar no mercado de trabalho nem contrair quaisquer obrigações da vida civil, para além do casamento e da procriação dos filhos legitimamente gerados pela via do matrimônio. Mesmo com a promulgação do Estatuto da Mulher Casada, em 1962, a mulher foi alçada ao posto de "colaboradora" do marido, mas este ainda era a figura de referência nas questões domésticas, tendo o direito de escolher o domicílio conjugal.
"A mulher que, não sendo casada, ajuizava em benefício de seu filho uma ação de investigação de paternidade, sofria uma verdadeira devassa na sua vida pessoal e. não raro, uma das matérias de defesa do apontado pai era a alegação de que se tratava de uma mulher 'fácil'", comenta Bruna. Ela lembra que, até ser editada a Lei 13.112/2015, a mãe não podia ir sozinha ao cartório e registrar o filho em nome do casal, só se o pai se omitisse e, mesmo assim, deveria levar a certidão de nascimento do pai e de casamento do casal – documentos que não são exigidos quando o homem é quem vai declarar.
A especialista constata: "Faço esses registros para que o leitor entenda o que significa dizer que a violência contra a mulher é 'estrutural', termo usado para descrever o enraizamento de práticas, noções e posições que vulnerabilizam a mulher e reforçam os estigmas de que ela seja inferior ao homem, ou que tenha menos direitos que o homem, ou menos dignidade que um homem, ou seja de menos confiança".
Machismo incide sobre outras situações
Iniciativas como o Projeto de Lei 5.096/2020 são uma tentativa de descortinar o véu de violências simbólicas e de práticas naturalizadas de violações às mulheres que assistimos recorrentemente na Justiça, diz Bruna Barbieri. No acesso à Justiça, são várias as situações em que o machismo pesa sobre as mulheres.
"A mãe que possui filhos com mais de um homem, muitas vezes, já é pré-julgada pelo preconceito de ter se relacionado com 'muitos'; a mãe que teve relacionamento paralelo com um homem casado já é, muitas vezes, pré-julgada, mesmo sem se saber ela também não fora enganada; a mãe que pede alimentos gravídicos pode ser vista como irresponsável por engravidar de relacionamentos passageiros; a mãe que pede o aborto de um bebê fruto de uma violência sexual acaba sendo pré-julgada como desumana, mesmo sendo ela quem irá carregar, por nove longos meses, a lembrança diária da violência sofrida."
Segundo a professora, essa é uma reflexão que deve perpassar a mente e o coração de todo profissional do Direito: quais as repercussões que meus atos, minha fala e meus escritos no processo judicial podem causar sobre a outra pessoa? "A proposta aprovada na Câmara traz, em suas entrelinhas, a empatia e a fraternidade como deveres éticos e jurídicos que atravessam o atuar profissional do jurista. Por isso, mais pertinente é a lembrança da lição do psicoterapeuta Carl Jung: 'Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana'."
Para Bruna Barbieri, toda legislação promulgada tem um importante efeito pedagógico de levar ao conhecimento da sociedade e munir a comunidade jurídica dos nomes correspondentes aos males que se pretende combater. "Caso aprovada, a futura lei irá inserir, de forma definitiva, o dever de cordialidade, humanidade e urbanidade no âmbito dos processos criminais, que sempre foram exigidos, mas que não dispunham, ainda, de medidas de fiscalização e punição caso descumpridos."
Ela conclui: "Os nomes importam e a existência de ferramentas jurídicas adequadas para cada violação de direitos também é importante, especialmente diante da natureza institucional e estrutural de violências a categorias específicas de vulneráveis, como as mulheres. Espera-se que a promulgação da futura Lei seja acompanhada da necessária divulgação e conscientização das pessoas e dos profissionais de Direito, a fim de que cenas lamentáveis como a do caso Mariana Ferrer sejam apenas uma lembrança triste e superada nos anais do Judiciário brasileiro".