A pandemia deve deixar um grande passivo trabalhista para o já sobrecarregado sistema judicial brasileiro. Até o momento, o número de ações que citam a pandemia em seus pedidos iniciais já chegam a 138 mil na Justiça do Trabalho.
Somadas, essas ações alcançam quase R$ 15 bilhões em verbas trabalhistas.
Levantamento feito a pedido da Folha pela Datalawyer, criador do “Termômetro Covid-19 na Justiça do Trabalho”, aponta que 14.604 processos trabalhistas citam a Medida Provisória 936 ou a regra originada nela, a lei 14.020, que permitiu aos empresários suspender contratos de trabalho ou reduzir jornada e salário de seus funcionários.
Caio Santos, diretor-executivo da Datalawyer, diz que é possível identificar apenas a menção das normas nos pedidos iniciais feitos por trabalhadores. Portanto, não é possível afirmar que em todas houve algum tipo de irregularidade nos acertos de demissões, por exemplo. O número ajuda, porém, a dar dimensão do potencial de novos processos.
Ao utilizar essas medidas emergenciais, os empresários se comprometiam a não demitir seus funcionários enquanto eles estivessem com contrato reduzido ou suspenso e, a partir do retorno, por um período igual ao da vigência da redução ou suspensão.
Para demitir sem justa causa nesse período de garantia de emprego, é necessário pagar uma indenização extra, encarecendo a rescisão. No país, 1,457 milhão de empregadores fizeram 19 milhões de acordos de redução de jornada e salário ou suspensão de contratos com seus funcionários para reduzir custos durante a crise.
Para a advogada Caroline Marchi, sócia trabalhista do Machado Meyer, a primeira questão relacionada à lei passível de judicialização é justamente o cálculo da indenização para a demissão de funcionários no período de vigência do acordo.
“Fiz o acordo para adotar a medida por 90 dias, mas vi que é melhor encerrar em 60 dias e demitir. Vou ter que indenizar, mas eu incluo os 30 dias restantes? Essa é uma discussão importante, de qual é a base de cálculo”, afirma.
O prolongamento da crise também começa a enfraquecer as vantagens da aplicação das medidas. A advogada diz que tem visto clientes optando por não renovar políticas de suspensão de contrato ou redução de salário e jornada para evitar compromisso com a estabilidade.
“Houve um opção até por suspender contratos de pessoas de grupo de risco, por exemplo, mas passa todo esse tempo e a pandemia não vai embora. Vai chegar uma hora que as pessoas vão ter garantia de emprego até além do meio do ano que vem”, afirma.
Essa perspectiva é o que, na avaliação do advogado Jorge Matsumoto, do Bichara Advogados, coloca em dúvida a legalidade da garantia de emprego.
O governo Jair Bolsonaro já prorrogou por três vezes a aplicação da medida. Quando foi apresentada na MP 936, ela valeria por até dois meses para a suspensão de contrato, e até três para a redução de jornada e salário.
A situação econômica ainda cambaleante e a adesão menor do que o Ministério da Economia projetou inicialmente fizeram com que, atualmente, as medidas cheguem a oito meses ao todo. Um trabalhador que fique com o contrato suspenso ou a jornada reduzida até dezembro deste ano, por exemplo, terá garantia de emprego até agosto de 2021.
“É uma multa muito grande, que considero inconstitucional. As empresas que adotaram [a regra] fizeram se esforçando para não demitir e agora estão em desvantagem em relação às que simplesmente demitiram”, afirma Jorge Matsumoto.
Para o advogado, já é possível afirmar que essas empresas continuarão em crise em 2021. O pagamento da multa seria apenas a “catástrofe final”. “A economia não melhora e você vai ter uma onda de ações judiciais que ninguém vai conseguir pagar.”
Segundo o levantamento do Datalawyer, das ações que citam a medida provisória ou a lei 14.020 nos pedidos iniciais, o setor de bares e restaurantes é o mais demandado, com 1.090 processos.
Esse aumento na judicialização já foi percebido no Sinthoresp (sindicato de trabalhadores de restaurantes e hotéis na região de São Paulo). Antes da pandemia, quando a entidade estava com funcionamento normal, 30 processos trabalhistas eram iniciados por semana.
Desde o início da crise sanitária, esse número subiu para 50 ações semanais e, segundo o sindicato, poderia ser maior, uma vez que o atendimento segue reduzido e é feito apenas com agendamento.
Além disso, desde a reforma trabalhista, em 2017, as empresas não são obrigadas a comunicar os sindicatos quantos demitem trabalhadores com mais de um ano de casa.
Alan de Carvalho, advogado do Sinthoresp, diz que muitas dessas empresas fecharam por falta de opção, pegas de surpresa pela impossibilidade de abrir portas durante meses. “Entendemos que muitos fecharam porque não tinham como arcar com as despesas de portas fechadas e que não houve má-fé", afirma.
Há, contudo, outro risco ao trabalhador, que é o desconhecimento do direito à indenização em caso de demissão. Por isso, a sugestão é para o funcionário demitido, na dúvida, não assinar recibos de quitação antes de procurar um sindicato da categoria ou um advogado.
Para o presidente da Abrasel-SP (Associação de Bares e Restaurantes de São Paulo), Percival Maricato, o aumento na judicialização era previsível. "Existem mais reclamações em momentos de crise, quando existem mais cortes. É uma tendência inevitável", diz.
Segundo Maricato, porém, os restaurantes têm feito grande esforço para evitar problemas com a Justiça do Trabalho. Ele diz que o sindicato vem orientando as empresas a buscarem negociar com os funcionários. "Nunca houve tanta unidade entre as duas partes para que os negócios possam sobreviver e os empregos continuarem", afirma.
Secretaria de Trabalho do Ministério da Economia diz que a auditoria fiscal do trabalho tem usado “inteligência fiscal no sentido de encontrar, com maior eficiência e eficácia, as situações com maiores indícios de irregularidade.”
Trabalhadores também podem fazer denúncias no portal gov.br. É necessário acessar "Trabalho, Emprego e Previdência", depois "Trabalho e Emprego". Em "Cidadão", clique em "Realizar uma Denúncia Trabalhista".