Em tempos em que a tecnologia se faz uma extensão humana, não é raro receber solicitações da firma pelo Whatsapp, mesmo depois do fim do expediente. Esse é o caso do professor de química F.N., que prefere não se identificar.
— Em geral à noite, recebo contatos de alunos tirando dúvidas, e de coordenadores para alterar questões de provas. Me sobrecarrega! É um tempo que eu poderia estar fazendo qualquer outra coisa — diz.
A situação tem levado muitos profissionais a pedir na justiça o pagamento de horas extras remotas. Segundo levantamento exclusivo feito a pedido do EXTRA pela Data Lawyer — plataforma que utiliza inteligência artificial para analisar processos trabalhistas — desde 2014 foram registrados 2.059 ações semelhantes. O recorde aconteceu em 2017, ano em que foi aprovada a reforma trabalhista, com 738 processos. Depois disso, as solicitações judiciais caíram. No ano passado inteiro, foram apenas 388.
Por causa das reclamações, algumas empresas começaram a elaborar manuais para uso corporativo do aplicativo. De acordo com uma pesquisa da consultoria global Great Places do Work, mais de 100 empresas no Brasil têm normas sobre uso do whatsapp para tratar questões corporativas. A empresa de tecnologia King Host, por exemplo, respondeu ao estudo da consultoria dizendo ordenar que os funcionários não respondam questionamentos fora do expediente.
Segundo a presidente da Associação Brasileira de Recursos Humanos do Rio de Janeiro (ABIH-RJ), Lucia Madeira, essa é uma extensão da recomendação que os RHs já faziam para contatos por e-mail ou telefone. Há algum tempo, a Unimed-RJ já se preocupa com o problema, tendo fixado abaixo das assinaturas do e-mail corporativo um aviso dizendo que os colaboradores devem priorizar o lazer no tempo livre e que só serão contatados fora do horário em situação de extrema emergência.
— Os chefes mandam mensagens porque se lembraram do assunto naquele momento. O subordinado, no entanto, entende aquilo como ordem e já começa a tentar uma resposta. Ele sente a obrigação de responder imediatamente — conta Lucia, opinando que a prática é um desrespeito à vida privada, já que os empregados também têm tarefas domésticas.
A gerente de RH de uma rede de padarias, L.V., de 26 anos, concorda. Ela conta que a prática prejudica o convívio social e familiar, por ter que ficar sempre de olho no celular, com receio de que algo aconteça e que ela não esteja disponível:
— Fico responsável pela parte de Recursos Humanos, Departamento Pessoal e Comercial. Dessa forma, recebo muitas demandas internas, como funcionários com dúvidas, gerentes pedindo ajuda para remanejo de quadro quando alguém falta, solicitações de autorização de retirada de dinheiro para pagamento de fornecedores e prestadores de serviços; além de contatos das empresas para as quais prestamos serviços, solicitações de fornecimento, etc. Obviamente isso me atrapalha bastante. Sem contar que o descanso acaba não sendo efetivo, já que sofro muitas interrupções após o expediente e nos fins de semana.
Justiça exige provas das horas extras
A Justiça já entende que estar à disposição da empresa, mesmo fora do local de trabalho é equivalente a fazer horas extras. De acordo com o advogado Júlio Conrado, do escritório FNC, se o trabalhador não pode desligar o celular, tendo que ficar online para atender demandas, ele pode ter direito ao pagamento adicional. O advogado trabalhista Daniel Alves explica que é preciso guardar provas para ter a causa julgada procedente:
— O fato de receber uma mensagem avulsa não caracteriza hora extra, porque ela não precisa, necessariamente, de resposta imediata. É necessário comprovar uma contrapartida, uma entrega que tenha feito após o pedido do chefe, como envio de relatório, por exemplo.
Cátia Vita, especialista em direito do trabalho, relata um processo contra uma empresa de informática, em que o chefe enviava diversas perguntas para o funcionário, fora do expediente, pedindo ajuda para solucionar casos de clientes.
— Ele tinha que parar seus afazeres para solucionar os problemas da empresa. Por conta disso, foi causa ganha.
Ela ainda conta que foi a partir de 2015 que os tribunais começaram a discutir com intensidade se mensagens de e-mail ou Whatsapp configuravam ou não hora extra.