Com impulso de vendas de bens essenciais e de produtos para o lar, a recuperação do comércio brasileiro após a pandemia surpreende economistas e reforça avaliações sobre mudança no perfil do consumidor refletindo o maior tempo em casa e a adoção de home office por muitas empresas.
Em julho, as vendas do comércio subiram 5,2%, o maior crescimento para o mês desde o início da pesquisa, em 2000. Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o setor já se encontra 5,2% acima do nível pré-pandemia e próximo dos patamares anteriores à recessão de 2016.
A recuperação nos últimos três meses é puxada principalmente pelos segmentos de móveis e eletrodomésticos e materiais de construção, beneficiados também pelo auxílio emergencial. Mas julho mostrou ainda que havia demanda reprimida por vestuário e calçados, que tiveram elevado crescimento no mês.
Quatro das dez atividades pesquisadas pelo IBGE já apresentam variação positiva no acumulado do ano. Todas elas ligadas de alguma forma ao consumo em casa: supermercados, móveis e eletrodomésticos, produtos farmacêuticos e de perfumaria e material de construção.
Já outras mais ligadas à circulação pelas ruas, como combustíveis e lubrificantes, vestuário e calçados, permanecem em queda no ano. "A dinâmica setorial mostra recuperação dos setores mais atingidos, mas também uma mudança no perfil de consumo", diz a economista-chefe do Banco Inter, Rafaela Vitória.
"A questão do trabalho remoto mudou um pouco a percepção do que é essencial", concorda o economista-chefe da CNC (Confederação Nacional do Comércio), Fábio Bentes. "O sujeito não precisa mais comprar um terno para ir trabalhar e tem alocado recursos em novos essenciais", completa.
Essa mudança tem impacto nos índices de inflação. Aparelhos domésticos e materiais de construção estão entre as principais altas do IPCA no ano, excluindo os produtos alimentícios: já subiram sete vezes mais do que a inflação.
Os preços dos computadores pessoais, por exemplo, cresceram 16,9%, enquanto os de aparelhos de TV, som e informática acumulam alta de 13,53%. O tijolo está 16,86% mais caro do que no fim de 2019. O preço do cimento subiu 10,67%.
Enquanto nos primeiros casos há alguma influência do câmbio, os dois últimos respondem a um crescimento da demanda impulsionada também pela distribuição do auxílio emergencial, usado por muitos brasileiros para pequenas reformas em casa.
Para Vitória, o movimento do varejo de material de construção "reflete em parte a forte demanda para reformas e obras, tendo em vista que as residências ganharam as funções adicionais de trabalho e de lazer".
Para os economistas, a retomada do comércio deve permanecer pelos próximos meses. Bentes, porém, vê um ritmo menos acelerado, tanto pela redução do valor do auxílio emergencial, que passou de R$ 600 para R$ 300 por mês, quanto pela menor necessidade de reposição de produtos do lar. "Ninguém troca de geladeira todo ano", diz.
A evolução das vendas no comércio em julho ficou bem acima das estimativas do mercado, que previa alta de 1,2% na comparação mensal e de 2,4% na comparação com o mesmo mês do ano anterior, segundo compilação feita pela Reuters.
A alta em relação a julho de 2019 foi de 5,5%, a maior para o mês desde 2013. Com o crescimento, estão apenas 0,1% abaixo do recorde histórico, registrado em outubro de 2014 e oscilando em níveis parecidos aos de antes da recessão.
"A gente abre o segundo semestre de 2020 num contexto de aquecimento no comércio", disse o gerente da pesquisa do IBGE, Cristiano Santos. “Até junho, houve uma espécie de compensação do que ocorreu na pandemia. Em julho, já temos um excedente de crescimento”, completou.
Santos ressaltou, porém, que é um crescimento desigual, já que ainda há setores em patamar muito abaixo do nível pré-pandemia. Mesmo com alta de 25,2% em julho, por exemplo, as vendas de tecidos, vestuário e calçados estão 32,7% abaixo de fevereiro.
Responsável por metade do indicador, o segmento de supermercados tem grande influência na recuperação dos patamares anteriores a 2014. Embora tenha ficado estável em julho, foi um segmento que se beneficiou da pandemia, com corridas de consumidores às compras nos momentos durante o pico da crise.
Pelo terceiro mês consecutivo, a pesquisa do IBGE mostrou menor impacto do isolamento social no comércio. Do total de empresas pesquisadas, 8,1% relataram impacto em suas receitas em julho, 4,1 pontos percentuais abaixo do número de junho.
De acordo com o IBGE, o comércio cresceu em 21 das 27 unidades da federação em julho, em comparação com o mês anterior. O chamado comércio varejista ampliado, que inclui vendas de automóveis e materiais de construção, avançou 7,2% frente ao mês anterior.