Uma mulher e um homem se conhecem por meio de um aplicativo de relacionamento. Ele, que se apresenta como advogado e diretor de uma montadora de automóveis, alega ter dívidas de empréstimos e despesas pessoais e, por conta disso, pede a ajuda dela, que o atende, entregando-lhe dinheiro em espécie. Após seis meses, a mulher descobre que nenhuma dívida foi paga e o prejuízo total já soma mais de R$ 19 mil.
O caso aconteceu em São Paulo e foi julgado pela 6ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo – TJSP, que condenou o homem pelo crime de estelionato a cinco anos, sete meses e seis dias de reclusão, em regime inicial fechado. A investigação constatou que o réu selecionava vítimas pela internet, por meio de aplicativo de relacionamento, para receber vantagem econômica de forma ilícita.
A decisão, que diz respeito à reparação patrimonial da vítima, é avaliada positivamente pelo advogado Marcos Ehrhardt Jr., vice-presidente da Comissão Nacional de Família e Tecnologia do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM. O especialista analisa que o caso também poderia ser tratado como estelionato sentimental.
“Infelizmente esta não é uma decisão isolada. O número de decisões dessa natureza vem crescendo bastante. Na imprensa, não é difícil encontrar a informação de que, somente em 2021, cerca de cinco milhões de pessoas foram vítimas de algum tipo de golpe no universo virtual. Não estou falando somente de golpes relacionados a estelionato sentimental, mas o número de pessoas que têm passado por situações em que golpistas tentam se aproveitar por meio da internet vem crescendo assustadoramente”, afirma.
Ele analisa: “A vítima de uma situação dessa tem duas opções. Ela pode denunciar para as autoridades competentes ou ela pode suportar todo um constrangimento ao procurar ajuda. A própria exposição e comunicação do que ocorreu gera um abalo psicológico na vítima que, em muitos casos, ainda passa por um tipo de escrutínio social”.
Quando a tecnologia esbarra no Judiciário
Marcos Ehrhardt defende que o crescimento do uso da tecnologia, juntamente à disseminação dos aplicativos de relacionamento, é uma realidade que não pode ser ignorada. No entanto, a coisa se complica quando esses assuntos chegam ao Judiciário.
“Não temos uma legislação específica para tratar de atos ilícitos perpetrados em ambiente digital. Então, quando um caso como esse acontece, é comum que recorramos a uma legislação feita para o ambiente analógico”, diz.
Sendo assim, um caso de estelionato sentimental encontra soluções no Código Civil e no Código Penal. Uma das ferramentas que pode ser utilizada nesse caso são os vícios de consentimento.
“É possível encontrar medidas nas duas esferas de atuação. Se houve transferência patrimonial para o golpista, é possível acionar os vícios de consentimento por meio do Código Civil, pedindo a anulação do ato que transferiu os valores alegando dolo. Se não for possível utilizar essa ferramenta, é possível ingressar com ação de reparação por danos patrimoniais e, a depender do caso concreto, a ação de danos extrapatrimoniais”, explica o advogado.
De acordo com o artigo 171 do Código Penal, constitui ato ilícito “obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento”.
“Para que seja configurado o crime de estelionato é necessário levar dois pontos em consideração. Em primeiro lugar, a vítima precisa ter sido induzida ao erro. Ou seja, planta-se na cabeça da vítima uma falsa ideia de realidade, então ela acha que está vivenciando um relacionamento amoroso quando, na verdade, o relacionamento não existe. É a partir dessa falsa ideia da realidade que o golpista opera em benefício próprio”, aponta.
Dois pesos e duas medidas
Marcos Ehrhardt Jr. pontua que é necessário levar em consideração que nem todo ato de disposição patrimonial se encaixa no conceito de estelionato sentimental.
“Às vezes existe mesmo um relacionamento que, por algum motivo, não deu certo. Se durante o relacionamento uma das partes aceitar ajuda financeira da outra não constitui ato ilícito. Também não é ilícito aceitar presentes, mimos e agrados. Não é ilícito terminar o relacionamento depois de ter recebido tudo isso. É necessário distinguir um ato deliberado, que se faz voluntariamente, ou um ato que configura estelionato”.
O advogado observa que, diante do aumento de casos dessa natureza, faz-se necessária uma punição adequada e efetiva. Segundo ele, o Brasil tem um alto número de impunidade, seja pela dificuldade de investigar e localizar indícios da autoria do crime seja pela dificuldade de compreensão de como operam as plataformas digitais nas quais esses crimes ocorrem.
“Para muita gente, ainda é difícil compreender como funciona uma rede social e quais são os requisitos para a identificação de uma pessoa. Também cabe aos desenvolvedores dessas plataformas criar ferramentas de segurança que auxiliem os usuários e sejam eficazes na hora de identificar as pessoas que estão interagindo nesses espaços”, ele diz.
E acrescenta: “Uma coisa que precisamos enfatizar é que não podemos culpar a vítima. Não podemos culpar alguém por gostar de outra pessoa. Pessoas que utilizam uma plataforma de relacionamento sem compreendê-la totalmente estão extremamente vulneráveis. Ao invés de focar em maiores penas contra os estelionatários, poderíamos investir, por exemplo, em várias frentes diferentes, como a adoção de mecanismos para prevenir que isso aconteça.”