O tema da judicialização da saúde volta ao plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) em 11 de março. O colegiado vai se debruçar sobre a possibilidade de fornecimento de medicamentos não previstos na lista do Sistema Único de Saúde (SUS). O caso tem ângulos diferentes, todos importantes: política pública de saúde, atendimento a pessoas com doenças graves, impacto fiscal, a intervenção do Judiciário na definição orçamentária para a área por parte dos Executivos.
O processo é o último de três grandes casos que discutem a judicialização da saúde que tramitam na Corte – no ano passado, o Supremo já julgou dois deles. O processo a ser julgado em março é de grande impacto nas contas públicas. De 2009 a 2018, os gastos do governo federal para o cumprimento de decisões judiciais relacionadas ao fornecimento de medicamentos e tratamentos somaram R$ 6 bilhões. Só em 2018, os custos chegaram a R$ 1,4 bilhão. Para o relator, o ministro Marco Aurélio, o Estado pode ser obrigado a fornecê-los desde que comprovadas a imprescindibilidade do medicamento e a incapacidade financeira do paciente e da família.
Além disso, para o ministro, o Estado não pode ser obrigado a fornecer fármacos não registrados na agência reguladora, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O tema põe em lados opostos entidades de saúde, associações de pacientes, que esperam a ampliação do acesso a tratamentos alternativos, e autoridades, que querem um freio nos processos pelo impacto nas contas públicas.
O Recurso Extraordinário 566.471 foi interposto pelo estado do Rio Grande do Norte contra decisão que determinou o fornecimento ininterrupto de medicamentos de alto custo para tratamento de uma doença grave. No caso concreto, a octogenária Carmelita Anunciada de Souza tem miocardiopatia isquêmica e hipertensão arterial pulmonar, e não possui condições financeiras de arcar com o custo dos medicamentos.
O tratamento prescrito a ela — Revatio (nome comercial do citrato de sildenafila) — não consta na relação do Programa de Dispensação de Medicamentos em Caráter Excepcional do Ministério da Saúde, a listagem que está em debate no caso. No Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte, a decisão favorável à paciente foi unânime. O processo chegou ao Supremo em 2007, e desde então aguarda uma solução, que vai balizar decisões em todo o país: há ao menos 39 mil processos parados no Brasil aguardando a decisão do STF neste caso, de acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
No STF, o caso tem encontrado menos consenso e mais cautela e preocupação, devido ao alcance que tomou. O processo foi discutido em audiência pública em 2009. Na ocasião, a Anis — Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero argumentou, por exemplo, que uma solução bem vinda seria a aposta na transparência e na criação de sistemas de revisão antes da contestação judicial, o que não se traduz na impossibilidade de controle de constitucionalidade da política ou de proteção ao direito individual por via judicial. “Esse pode ser um caminho de diálogo promissor para o fenômeno da judicialização e a estabilização jurídica do direito à saúde.”
A tese apresentada na judicialização dos serviços de saúde é de que o Estado, ao se omitir sobre a proteção dessa demanda, colocaria a vida do indivíduo em risco. Os juízes muitas vezes recebem a tese do risco, acolhem os laudos médicos que acompanham o processo e sustentam ter poucas informações sobre os critérios de inclusão de medicamentos pelo Ministério da Saúde para atender ou recusar o pedido judicial por meio de outras evidências. Diante da ausência de mais informações, os juízes tendem a decidir pelo princípio da precaução e, assim, optam por conceder os medicamentos.
À época, o atual presidente da Corte, ministro Dias Toffoli, participou do encontro ainda como advogado-geral da União. Por isso, ele se declarou impedido no caso. Já como presidente da Corte, ele recebeu 12 governadores para tratar do tema da judicialização da saúde, tendo como foco este e outros três REs em tramitação. Os chefes dos Executivos locais informara a Toffoli que o impacto de decisões judiciais que determinam os fornecimentos de medicamentos e procedimentos em 2018 havia sido de R$ 17 bilhões. Em 2019, até maio, o valor já era de R$ 7 bilhões.
Preocupado com os valores e a assistência aos cidadãos, o presidente do STF defendeu uma atuação judicial comedida: “O Judiciário tem de se autoconter. É evidente que temos uma Constituição que garantiu uma série de direitos, mas temos os limites do possível. Temos que levar em consideração os recursos na medida que passamos por dificuldades fiscais”.
Diante da envergadura do processo, os estados e outras entidades participam da discussão como amici curiae. São eles: Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Associação Brasileira de Assistência à Mucoviscidose (ABRAM), a União, a Defensoria Pública-Geral da União, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, a Anis e 21 unidades da federação — Acre, Alagoas, Amapá, Amazonas, Bahia, Distrito Federal, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Paraná, Rondônia, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo e Sergipe. Há, ainda, a Casa Hunter – Associação Brasileira dos Portadores da Doença de Hunter e Outras Doenças Raras, representada por Rosângela Moro, a advogada e esposa do ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro.
Juridicamente, o Supremo tem de decidir se ofende os artigos 5º, 6º, 196, e 198, §1º e §2º, da Constituição Federal o acórdão que condenou o estado do Rio Grande do Norte a fornecer medicamento de alto custo que não consta do programa de dispensação de medicamentos em caráter excepcional.
Plenário
Quando começou a ser julgado, em setembro de 2016, o processo foi analisado em conjunto com o RE 657.718, que trata sobre o dever do Estado de fornecer medicamento de alto custo que não tem registro na Anvisa.
Na ocasião, votaram o ministro-relator Marco Aurélio, e os ministros Luís Roberto Barroso e Edson Fachin. O julgamento foi suspenso por pedido de vista do ministro Teori Zavascki, e só voltou à pauta no 22 de maio de 2019.
No dia 22 de maio do ano passado, foram pautados três REs relacionados a temas de saúde, todos com repercussão geral reconhecida. Na sessão, os ministros decidiram julgar separadamente os recursos, e só houve tempo para se julgar o RE 657.718, cuja controvérsia é saber se o Estado tem o dever de fornecer medicamento sem registro na Anvisa. Na ocasião, o plenário decidiu que o poder público não tem essa obrigação, e fixou critérios para as exceções.
Já a discussão do RE 566.471, mais ampla e com um impacto maior no sistema de Justiça, é saber se o Estado deve fornecer medicamento de alto custo que não consta do programa de dispensação de medicamentos em caráter excepcional.
Como começaram a ser analisados em conjunto, o entendimento que foi aplicado no primeiro processo deve balizar a decisão no recurso que ainda está pendente de análise. Acredita-se que o colegiado construa uma tese intermediária, semelhante à que foi proposta pelo ministro Luís Roberto Barroso no outro caso.
Ainda que a discussão seja um pouco diferente, há pontos em comum como pano de fundo e nos primeiros votos dados, os ministros Marco Aurélio, Barroso, Fachin e Alexandre de Moraes — que no dia 22 de maio de 2019 devolveu ao plenário a vista pedida pelo seu antecessor Teori Zavascki — abordaram os dois temas.
Na primeira sessão, depois das várias sustentações orais, o relator, ministro Marco Aurélio, votou contrariamente ao pedido do recurso do Rio Grande do Norte.
Já para Barroso, no caso de demanda judicial por medicamento incorporado pelo SUS, não há dúvida quanto à obrigação de o Estado fornecê-lo ao requerente. Quanto à hipótese de demanda judicial por medicamento não incorporado pelo SUS, inclusive aqueles que forem de alto custo, o ministro entende que o Estado não pode ser obrigado a fornecê-lo, como regra geral.
Barroso propôs cinco requisitos cumulativos, que devem ser observados pelo Poder Judiciário para o deferimento de determinada prestação de saúde: “incapacidade financeira de arcar com o custo correspondente; demonstração de que a não incorporação do medicamento não resultou de decisão expressa dos órgãos competentes; inexistência de substituto terapêutico incorporado pelo SUS; comprovação de eficácia do medicamento pleiteado à luz da medicina baseada em evidências; propositura da demanda necessária em face da União, já que a responsabilidade pela decisão final sobre a incorporação ou não de medicamentos é exclusiva desse ente federativo”.
Fachin adotou a mesma linha de Barroso, com dois pontos diferentes. O ministro defendeu parâmetros que devem balizar os pedidos de medicamentos, sendo a indicação do medicamento no laudo médico por meio das denominações comuns brasileira (DCB) ou internacional (DCI) e ainda a justificativa da inadequação ou da inexistência do remédio ou tratamento na rede pública.
Segundo Alexandre de Moraes, o Judiciário precisa ponderar que, embora a Constituição garanta o direito fundamental à saúde, as decisões em demandas judiciais individuais podem causar desequilíbrio na política pública, prejudicando a coletividade. Ele disse entender a situação do juiz de primeiro grau, que se vê diante da angústia de um paciente específico. Mas também é preciso olhar para a capacidade do poder público de “sustentar financeiramente todas as políticas públicas”.
O ministro Ricardo Lewandowski defendeu que é preciso pesar a posição social do paciente e da família para decidir sobre o fornecimento, ou não, do medicamento pedido. “Eu me coloco dentro daquilo que é unanimidade dos colegas da corte: não é possível exigir-se sempre o remédio que não consta da lista, mas é possível de ser estabelecido diante de circunstâncias excepcionais”, disse o ministro.
Toffoli planejara, inicialmente, concluir o debate ainda no ano passado, mas não houve tempo hábil para isso na pauta. Ministros já afirmaram, reservadamente, que é provável que a mesma linha seja seguida e que a tendência é de que o plenário reconheça que o poder público precisa fornecer os medicamentos nos casos em que há previsão na lista do SUS. Nos casos em que o medicamento não estiver na lista, os ministros devem fixar critérios para balizar as excepcionalidades.