Diante do desafio de ter mais liquidez para enfrentar a crise eclodida pelo novo coronavírus, companhias já estão debruçadas sobre a possibilidade de acessar os R$ 250 bilhões depositados em contas judiciais, dadas em garantias em processos. Com crédito escasso e a paralisação dos negócios em meio à pandemia, que colocou um terço da população mundial dentro de casa, esses recursos aparecem como uma fonte importante de recursos no cenário atual enquanto as medidas do governo não são suficientes para ajudar todas as atividades afetadas.
Nos escritórios de advocacia, os questionamentos sobre essa possibilidade têm crescido em meio à crise gerada pela Covid-19. Não é por menos: se a troca da garantia for permitida, a empresa terá acesso aos recursos, hoje parados em contas judiciais. A moeda de troca seria o uso, em contrapartida, de outras garantias como o seguro judicial ou ainda fianças bancárias.
A substituição dos depósitos judiciais é uma demanda antiga do setor corporativo e do mercado de seguros, interessado em desenvolver a modalidade, mas ganhou destaque em meio à crise do coronavírus. Além de acelerar o assunto nas empresas, tem movimentado diferentes áreas dos escritórios de advocacia. “Para o credor, não muda o fato de ser um depósito ou um seguro garantia, não muda a proteção. Mas em alguns casos salva a vida do devedor”, diz o sócio da área tributária do escritório Bocater, Alexandre Monteiro.
Duas decisões judiciais recentes, depois de a pandemia ter atingido o País, já legislam a favor da substituição de depósitos judiciais por seguro garantia. Uma delas demandada pela aérea Azul no valor de cerca de R$ 129 milhões, e outra por parte da IREP – Sociedade de Ensino Superior, Médio e Fundamental. Na última, o desembargador federal, que assina a decisão, ao dar o aval pela troca do depósito judicial por seguro garantia, afirma que devido ao estado de calamidade pública a empresa vem vivendo inúmeros efeitos da crise trazida pela pandemia, incluindo queda de receita.
Na Justiça, os depósitos são pedidos para garantir à parte vencedora o pagamento devido, trazendo, assim a efetividade da decisão judicial. Os juízes podem determinar que o valor discutido em um processo seja transferido para uma conta bancária antes da decisão final da ação. Esses recursos são depositados nos bancos públicos em uma conta específica que fica sob custódia da Justiça.
Na prática, não há impeditivo na lei que impeça a troca por um seguro ou uma fiança bancária. O problema é que muitas empresas desconhecem essa alternativa. O texto do artigo 835 no Novo Código de Processo Civil destaca que é “prioritária a penhora em dinheiro”, mas equipara a fiança bancária e o seguro garantia judicial ao dinheiro, cabendo, caso a caso, a análise do juiz.
Além disso, uma série de decisões e avanços contribuíram para uma melhor aceitação do seguro. Geralmente, quando é um novo processo, não há dificuldades. O problema é justamente a substituição da garantia quando já foi feito um depósito.
De acordo com o sócio da 3 Seg Seguros, Alexandre Laender Delgado, empresas com processos de diferentes montantes têm apresentado interesse pela substituição do depósito por um seguro de garantia judicial. Contribui, sobretudo, além do benefício da liberação de recursos, o custo do produto frente às fianças bancárias, que consomem capital junto a bancos diferentemente das apólices. Em geral, a taxa varia de 0,30% a 1,0% do valor em questão, sendo quanto melhor a nota da empresa mais baixo é o custo do seguro.
Uma apólice de cinco anos para fazer frente a um processo que exija R$ 400 milhões em depósito judicial, por exemplo, para uma empresa de rating bom, custaria, em média, R$ 1,6 milhão por ano ou R$ 8 milhões diluídos durante a vigência do contrato. “É um custo baixo pela oportunidade de acessar um capital que estava até então bloqueado”, avalia Delgado.
Há ainda um avanço em torno das áreas que se valiam do uso do seguro ou da fiança bancária para processos judiciais. Antes mais recorridos nas áreas tributárias, passaram também a ser demandados nas disputas trabalhistas. Essa alternativa começou a ser analisada mais de perto depois de uma decisão do Conselho Nacional da Justiça (CNJ), no fim de março: por 11 votos a três o Plenário Virtual votou a favor da troca de depósitos por seguro ou fiança em processos trabalhistas.
O sócio da área de contencioso do escritório Macedo Garcia Advogados, Paulo Macedo Garcia Neto, comenta que agora as empresas também começam a vislumbrar a possibilidade de acesso a depósitos judiciais em negociações entre partes privadas, como em discussões em arbitragens, por exemplo. Segundo ele, o judiciário tem se mostrado sensível a essa troca.
Para o especialista, contudo, o que não se sabe é se as seguradoras terão apetite para prover esses seguros a todas as companhias, exatamente em um momento de maior aversão ao risco. Na análise das seguradoras, aponta Garcia Neto, estará, por exemplo, a chance de êxito em cada caso.
É nesse contexto que há um esforço de estender o uso dos depósitos judiciais para todo o mercado de seguros, utilizando a capacidade de um sindicato de seguradoras, apoiadas por resseguradoras. Até mesmo porque além do risco de cada empresa contratante, não há capacidade para todo o estoque de R$ 250 bilhões.
Nos últimos anos, o mercado de seguro garantia judicial multiplicou em tamanho e número de players em meio à retração de outra modalidade, as apólices voltadas aos projetos de infraestrutura, que pararam por conta da Lava Jato. Esse segmento movimenta cerca de R$ 2 bilhões por ano. Do total, a garantia judicial representa entre 85% e 90%, com seguradoras de nicho como Pottencial, Junto Seguros (ex-JMalucelli), BMG e ainda empresas multiramos como a americana Chubb, a suíça Zurich e a espanhola Mapfre.