O crédito para empresas, que praticamente secou no início da quarentena, voltou a ser combustível para a recuperação dos negócios, principalmente entre as pequenas empresas. Só o Programa Emergencial de Acesso ao Crédito (Peac), administrado pelo BNDES com garantia do governo, emprestou R$ 71,1 bilhões em menos de quatro meses. Somados aos R$32,8 bilhões liberados pelo Pronampe, programa para micro e pequenas empresas, foram concedidos R$ 103,9 bilhões em empréstimos com garantia do Tesouro Nacional.
Isso foi possível porque a dificuldade de oferecer garantia, principal obstáculo para empresas conseguirem crédito, foi resolvida pelo governo, que passou a assumir a maior parte do risco. Mas os recursos podem acabar. O diretor de Crédito e Garantia do BNDES, Petrônio Cançado, admite que, mantido o ritmo acelerado de concessões, o limite de R$ 100 bilhões do Peac pode ser atingido antes do fim do programa, em 31 de dezembro. O banco já estuda uma nova linha para 2021, com garantias, mesmo sem participação do governo.
Para o executivo, o apetite está ligado à demanda reprimida por crédito e à recuperação da economia. Mais de 90% das 89 mil empresas atendidas pelo programa do BNDES são micro, pequenas e médias. Os valores vão de R$ 5 mil a R$ 10 milhões.
— Vimos que era preciso apoiar as pequenas empresas na garantia porque representam parte importante do PIB e são grandes empregadores.
Mário Sérgio Telles, gerente de Política Econômica da Confederação Nacional da Indústria (CNI), afirma que dar garantia para os empresários foi fundamental para deslanchar o crédito. E isso aconteceu a partir do terceiro trimestre:
— O início foi complicado, mas quando os fundos (garantidores de crédito) começaram a operar, a coisa mudou. As operações de crédito foram destravadas e passaram a crescer muito rápido. Em setembro, as concessões cresceram 10,5%, de R$ 162 bilhões em agosto para 178,9 bilhões em setembro.
Nem cartão de crédito
Alexandro Zubaran, CEO da Enjoy Hotéis e Resorts, foi um desses empresários que conseguiu crédito nessas condições. A previsão de faturamento para o Enjoy Olímpia Park Resort, no interior de São Paulo, para este ano de R$ 45 milhões caiu para R$ 19 milhões:
— A situação ficou preocupante, não sabíamos a extensão da crise. Buscamos em todos os bancos, não eram só negativas, as condições eram absurdas. Não aceitavam recebíveis (recursos a receber) nem de cartão de crédito.
A empresa conseguiu por meio da agência de fomento Desenvolve SP, ligada ao governo paulista, R$ 2 milhões para rede de hotéis e mais R$ 700 mil para um restaurante, ambos no interior do estado, com carência de um ano.
Zubaran, que é sócio do Hotel Nacional no Rio, reaberto no ano passado, diz que ainda não conseguiu empréstimo para a unidade carioca.
A dúvida paira sobre 2021, quando as linhas asseguradas pelo Tesouro Nacional devem cessar. Segundo Cançado, não há previsão de extensão do programa atual, mas o BNDES poderá manter as garantias no ano que vem, numa linha de crédito sem reforço do Tesouro. Os recursos viriam do próprio BNDES e de captações no mercado:
— A experiência mostrou a potência do instrumento de garantia. O desafio agora é criar algo perene, permanente.
É o que também defende a CNI, que a cobertura permaneça pelo menos até o primeiro semestre de 2021.
Para Cançado, a vantagem das garantias é que com R$ 20 bilhões do Tesouro é possível oferecer até cinco vezes mais crédito. As taxas são em média de 0,87% ao mês.
Em julho, Paulo Fernandes, dono de uma imobiliária em Palmas, no Tocantins, conseguiu pelo Pronampe empréstimo de R$ 74 mil para atravessar a crise, com taxa 3,25% ao ano, bem inferior aos 7%, 8% cobrados antes:
— Se o banco exigisse, teria que dar um bem pessoal, como uma casa, um carro.
O empresário diz que as receitas com aluguéis caíram 50%, e ele teve de demitir dois dos sete funcionários:
— Usei o dinheiro para apagar incêndio. Deu um fôlego. O mercado imobiliário em Palmas já está bem aquecido e não vou ter dificuldades para pagar o empréstimo. Já vou poder voltar a contratar.
O presidente do Sebrae, Carlos Melles, lembra que, no início da pandemia, só 8% das micro e pequenas empresas tinham acesso ao crédito. Esse índice subiu para 31%, mas Melles diz que, ainda assim, só metade dos empreendedores que pedem crédito consegue:
— O problema é que os bancos trabalham com uma taxa de risco muito reduzida, perto de zero. Quando a garantia apareceu, o crédito avançou.
Sinais de retomada
Na Desenvolve SP, onde Zubaran conseguiu viabilizar o empréstimo, sinais de retomada começam a aparecer. Os pedidos agora são também para investimento.
— Empresas estão começando a tirar projetos de investimento da gaveta. Estão se organizando com a volta da atividade, com a pandemia arrefecendo — diz Nelson de Souza, presidente do Desenvolve SP.
Foi para investimento que o empresário Sandro Meneghetti, um dos sócios da ZIT Gráfica, na Zona Norte do Rio, conseguiu R$ 2,6 milhões para comprar uma máquina e automatizar parte da produção. Voltado para impressão de livros didáticos, a empresa não viu sua demanda cair drasticamente. Mas na entressafra estudantil, entre um ano letivo e outro, quando a demanda do setor cai 80%, não teve outros clientes para compensar a queda como em anos anteriores. A produção caiu para 15% entre setembro e outubro:
— Conseguimos nos manter, mas o crédito só apareceu em outubro. Começamos a procurar em abril.
Izis Ferreira, economista da Confederação Nacional do Comércio (CNC), começou a perceber sinais de retomada em outra estatística: o uso de cartão de crédito entre quem ganha mais de dez salários mínimos. A parcela nessa faixa de renda que usou o crédito subiu de 74,7% em agosto para 75,8% em setembro:
— Essas famílias estão aos poucos voltando a consumir.
O economista Claudio Frischtak, da Inter.B Consultoria, afirma que, ainda que a perspectiva para o início de 2021 seja de retomada lenta, os subsídios do Tesouro precisam ser retirados em dezembro:
— Se tem algo que a pandemia mostrou é que a questão das garantias é muito relevante. Esse custo de transição, para garantir a reorganização das empresas, justifica a ação do Tesouro, como foi feito em outros países. Mas é uma situação extraordinária. No ano que vem, os subsídios terão de ser racionalizados, voltando para certa normalidade. O Brasil está numa situação fiscal de muita fragilidade, com a solvência posta em xeque.
Mesma opinião tem Vinicius Carrasco, professor da PUC e ex-diretor do BNDES:
— Tem de deixar o mercado privado retomar seu papel de conceder o crédito.
Sergio Vale, economista -chefe da MB Associados,para 2021, não vê risco de crédito faltar. Ele teme falta de demanda, com as empresas ainda combalidas pela crise e com o rombo fiscal, que pode levar à alta de juros e da inflação:
— Quem vai tomar crédito, se o crescimento não vai acontecer, juro vai subir pelo risco fiscal, com inflação elevada? Se a estabilidade macroeconômica se perder, não tem sentido ter muito crédito.