Contabilizar efeito do coronavírus requer atenção especial

Fonte: Jornal do Comércio
30/03/2020
Coronavírus

O vice-presidente técnico do Conselho Federal de Contabilidade (CFC), Idésio da Silva Coelho Júnior, participou da elaboração do documento em que alerta profissionais sobre o impacto da pandemia do coronavírus nas demonstrações contábeis e outros temas relacionados à contabilidade. Em entrevista ao JC Contabilidade, Coelho Júnior detalhou alguns pontos do documento e afirmou que o objetivo é dar tranquilidade aos profissionais e indicar quais normas contábeis e de auditoria já existem e podem ser usadas nessa situação.

Coelho Júnior salientou que talvez seja o momento de o governo brasileiro de outros países, como a China e os Estados Unidos, começar a pensar em medidas para proteger a economia. Segundo ele, a economia nacional é muito dependente do funcionamento dos pequenos negócios.

"Quem move, de fato, a economia e gera mais empregos são elas. E são as mais sensíveis financeiramente. Talvez possa vir uma medida governamental incentivando os bancos a alongarem e renegociarem os financiamentos, tendo em vista que os bancos hoje estão mais preparados para isso do que no passado", destaca.

JC Contabilidade - O que motivou a realização da nota do CFC a respeito das normas contábeis possíveis de serem aplicadas? A categoria já estava demonstrando preocupação e procurando vocês?

Idésio da Silva Coelho Júnior - A nota surgiu basicamente em função do crescimento dos impactos financeiros relacionados ao coronavírus. Várias empresas já começaram a sofrer com seus reflexos e os contadores ficaram mais em dúvida. Alguns reguladores internacionais também começaram a divulgar ações vinculadas com isso. Eles estão alertando sobre aspectos contábeis ou tomando medidas vinculadas com a postergação de prazos e arquivamento de demonstrações contábeis. Por isso, tomamos a decisão de emitir um alerta pela combinação desses fatores. Queríamos, de uma forma antecipada no Brasil, emitir um posicionamento aos profissionais dando a eles tranquilidade e um caminho com as normas que já existem das normas contábeis e de auditoria que podem ser usadas essa situação. O CFC é o regulador da profissão e se sente na obrigação de monitorar a conjuntura e de se antecipar. Não criamos nenhuma norma nova, apenas destacamos as normas que existem e podem ser utilizadas.

Contabilidade - Isso tudo por que os impactos com certeza vão além da saúde das pessoas e já estão invadindo o campo econômico.

Coelho Júnior - Sim, as ações que os governos adotaram para conter a proliferação do surto têm seus desdobramentos. Os principais reflexos hoje são paralisação de fábricas e dificuldade em cumprir contratos, na locomoção de pessoas para acessar determinados mercados, em honrar contratos e compromissos fazendo com que, de uma forma geral, o mercado reaja de uma forma extremamente sensível a todas essas incertezas. Todo o mercado está em alerta. Sempre que há incertezas, as pessoas e os dirigentes postergam ações. Se iam tomar alguma decisão agora acabam por esperar na tentativa de conter a proliferação do surto em si mesmo.

Contabilidade - Qual a importância de as companhias refletirem esse cenário nas suas comunicações com o mercado?

Coelho Júnior - Isso irá variar muito de uma companhia para outra. Têm aquelas que serão mais atingidas. A cada dia nós observamos ações mais restritivas à circulação. Fala-se, inclusive, que o impacto na redução das receitas das companhias de aviação em nível global no ano de 2020 deve chegar a US$ 100 bilhões. Há setores, como o da aviação, em que não há como recuperar o que foi perdido.

Contabilidade - Uma das normas salientadas pelo CFC é a de Eventos Subsequentes. Como funciona e que empresas devem usá-la?

Coelho Júnior - Primeiramente, é importante lembrar que nem todas as companhias encerram o exercício em 31 de dezembro. Muitas encerram agora em março ou até depois. Caso, a empresa tenha encerrado em 2019 é preciso prestar atenção pois para que seja um Evento Subsequente, o impacto econômico precisava estar presente em dezembro de 2019. Esta norma tem dois gatilhos: o primeiro é a identificação do Evento Subsequente e o segundo é a classificação dele como um evento que demanda ajuste da demonstração anterior ou que não demanda. Por isso, não me parece que para uma companhia que fecha as demonstrações em dezembro de 2019 seja aplicável um ajuste que demanda reconhecimento contábil de perdas e provisionamentos. É um evento econômico conhecido em 2020, que não estava presente em dezembro de 2019. Lembrando que se o ajuste não estava presente em dezembro é obrigação da companhia incluir o Evento Subsequente tipo 2 - aquele que não demanda ajuste, mas demanda divulgações - em Notas Explicativas. Se formos falar das demonstrações contábeis em si, teria que ter uma seção com o nome de Evento Subsequente mencionando.

Contabilidade - Mas existem muitos casos de companhias que fecham depois.

Coelho Júnior - Um exemplo é o setor da agropecuária, que no Rio Grande do Sul é bastante forte. Tem várias companhias que fecham em março ou em maio. Então, nesses casos, não são nem subsequentes. Nem precisamos falar dessa natureza. Eles vão entrar naturalmente como eventos do período. Vamos imaginar uma companhia que fecha em 28 de fevereiro ou 31 de janeiro. Talvez essa posição não seja tão clara como para quem fecha em dezembro. Daí ela tem que analisar se os impactos estavam presentes, se eram importantes naquelas datas e, se forem, mesmo que eles tenham se tornado mais conhecidos em março, deveriam ser ajustados em janeiro ou fevereiro de 2020, sim.

Contabilidade - E quais os itens de Ativos e Passivos que as companhias mais têm de prestar atenção?

Coelho Júnior - Podem ser muitos e diferentes para cada organização, mas podemos recomendar atenção em alguns. O primeiro seria o Estoque. Depois, o Ativo Imobilizado, onde terá de ser feito um cálculo de ociosidade ou se o ativo pode não ser realizado no momento previsto. Os preços relativos dos produtos podem sofrer uma significativa flutuação, para baixo ou para cima e eu tenho de analisar se os ativos que foram comprados levando em conta uma expectativa de realização terão de ser ajustados para refletir essa realização menor quando eles foram realizados. A conta de Investimentos também deve ser bem analisada. Tem empresas com operações nos mercados mais impactados e elas precisam se perguntar se seus investimentos continuam sendo realizáveis, se o valor que está fora é convertido em caixa no Brasil por meio de dividendos. Além disso, as contas de Ativos Financeiros e Passivos Financeiros de uma forma geral são as que mais recebem impacto imediato. Eu destacaria reflexos na realização de recebíveis e no caso de empresas que colocam sua sobra de caixa na bolsa de valores.

Contabilidade - E um ponto muito sensível, que o capital de giro da companhia, também acaba sendo impactado. Como encarar esse problema?

Coelho Júnior - Exato. Existe a queda na receita, mas as despesas são fixas. A folha de pagamento, os contratos de financiamento com os bancos, todos esses compromissos têm prazos determinados para pagar. Essa queda no capital de giro pode fazer com que a conta de empréstimos e financiamentos aumente, com que as empresas tenham alta nos convenants e nos índices de endividamento e as dividas que estavam classificadas como de longo prazo passem a ser classificadas como de curto prazo.

Contabilidade - Está se aproximando a data de publicação das informações trimestrais (ITR) das companhias e o cenário que se desenha é de bastante apreensão. Quanto tempo isso deve durar? A gente pode dizer que 2020 vai ser bastante parado em relação aos negócios fechados?

Coelho Júnior - É difícil prever, porque não sabemos quanto tempo esse cenário se estenderá. Quanto mais tempo a pandemia durar, maiores serão as incertezas. E, em momentos assim, as pessoas postergam tudo e as companhias também. Uma pessoa que ia reformar a casa já não faz por que não sabe se amanhã vai ter emprego. Com as companhias é um pouco parecido. Mesmo que tenham muito interesse em agir, elas esperam. É natural que quanto mais tempo essa crise durar mais a economia nacional e global vai sofrer para se recuperar. O alerta do CFC foi no sentido de orientar os profissionais no médio prazo, já pensando nos ITRs. A gente não quis focar exclusivamente em dezembro, mas no decorrer do ano. Espero que isso resulte em melhoria da informação contábil e financeira para os profissionais e para as empresas. A CVM (Comissão de Valores Mobiliários) no dia seguinte também emitiu orientação na mesma linha, demonstrando que o caminho é este mesmo.

Desenvolvido por:

Desenvolvido por: