A velha e tradicional compra na caderneta para pagar só no final do mês voltou a ganhar força no último ano por causa da recessão. Em 2016, até meio milhão de famílias começaram a adotar o pagamento fiado para abastecer a despensa com itens básicos, como alimentos e produtos de higiene e limpeza, e driblar o aperto no orçamento doméstico.
No ano passado, 14,1 milhões de famílias usaram ao menos uma vez a caderneta para ir às compras nos mercadinhos de bairro, padarias e açougues, segundo pesquisa da consultoria Kantar Worldpanel, que visita mensalmente 11,3 mil domicílios. A amostra retrata os hábitos de consumo das 52 milhões de famílias do País. No ano anterior, 13,5 milhões de famílias tinham usado ao menos uma vez a caderneta como forma de pagamento.
“A tendência era de o fiado ir desaparecendo, mas voltou a crescer no último ano”, afirma a diretora Comercial e de Marketing da consultoria, Christine Pereira. Ela lembra que, apesar de porcentualmente o aumento ser pequeno, de 26% para 27% das famílias pesquisadas, nove anos atrás esse número era bem maior: 45% das famílias faziam as compras de itens básicos anotando na caderneta e quitavam a conta no fim do mês.
O avanço do fiado também é apontado pela consultoria Nielsen, que visita duas vezes ao mês 8,2 mil domicílios. Com metodologia diferente, os números das duas pesquisas ficam distantes, mas a tendência de crescimento é a mesma. “Identificamos que 1,178 milhão de donas de casa compraram fiado ao menos uma vez ao longo de 2016 em todo Brasil”, diz Raquel Ferreira, especialista em Conhecimento do Consumidor da consultoria. Ela observa que, deste total, 226,5 mil novos consumidores também passaram a adotar essa forma de pagamento no último ano.
A especialista lembra que até 2015 essa modalidade de pagamento caía, em média, 6% ao ano. Ela atribui a virada ao aumento do desemprego. Christine concorda com Raquel e ressalta que a volta do fiado é uma alternativa do consumidor ao bolso apertado por causa da crise. Segundo ela, quando o tripé renda, emprego e inflação estavam bem, o consumo ia de vento em popa. Mas nos dois últimos anos os três pilares fracassaram e as compras recuaram. A saída foi buscar alternativas como a compra por caderneta. Esse movimento, segundo ela, explica o avanço do fiado por conta da crise.
De toda forma, Christine considera muito grande ainda o uso da caderneta no País. Pesquisa da Kantar Worldpanel aponta que a caderneta é o quarto meio de pagamento escolhido pelo brasileiro nas compras de produtos básicos, perdendo para o dinheiro, o cartão de crédito e o cartão de débito, mas ainda à frente do cheque e do tíquete alimentação.
Classes sociais. As duas pesquisas mostram que o uso da caderneta no último ano foi mais intenso nas camadas com menor renda, que são as mais afetadas pelo desemprego e pela recessão. De acordo com os dados, 38% das classes D/E e 28% da classe C informaram que fizeram uso do fiado no ano passado, ante 27%, que foi a média nacional.
Geograficamente, a maior utilização do fiado em 2016 e ocorreu nas regiões mais pobres, Norte e Nordeste, com 39% de participação, e nas cidades do interior do País (32%). Já na Grande São Paulo, no Sul e no Centro-Oeste, onde a renda média é maior, o uso do fiado foi menor do que a média.
“Existem vários brasis dentro do Brasil”, observa Christine. Ela considera significativo o uso da velha caderneta, convivendo com os cartões de débito, de crédito e os meios de pagamento virtuais, típicos da sociedade moderna de consumo.
Um ponto importante destacado pela especialista é que o avanço do fiado detectado no ano passado não foi algo esporádico. As famílias que optaram pelo fiado usaram essa forma de pagamento em média nove vezes durante o ano, praticamente todos os meses. O gasto médio foi de R$ 445 por ano, especialmente para compra de alimentos e itens de higiene.
Atacarejo. As dificuldades para tentar manter o padrão de consumo e fechar as contas do mês na crise atual provocaram atitudes diferentes do consumidor, dependendo da faixa de renda. Enquanto os mais pobres recorreram ao fiado, que depende mais de uma relação interpessoal de confiança entre o dono da loja e o cliente, o brasileiro com maior renda, mas também com o bolso apertado por causa da recessão, optou pelo atacarejo para economizar, explica Raquel, especialista da Nielsen.
O atacarejo é um modelo de loja despojado comparado ao supermercado comum, que vende no varejo produtos com preço de atacado por conta dessa redução na despesa da loja.