Com as vendas em lenta recuperação, em meio ao relaxamento do isolamento social na maior parte do país, o varejo enfrenta uma nova dificuldade: a de repor estoques.
Comerciantes de setores diversos relatam atrasos de entrega pela indústria, falta de produtos e aumento de preços, que comprimem margens diante da impossibilidade de repasse ao consumidor com a economia ainda enfraquecida.
A pesquisa Pulso Empresa do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), divulgada nesta quarta-feira (2), mostrou que 45,4% dos entrevistados enfrentaram dificuldade de acesso a insumos, matérias-primas ou mercadorias na segunda quinzena de julho, acima dos 38,6% que enfrentavam o problema na quinzena anterior.
O contratempo é mais frequente entre pequenas empresas –45,5% relataram esse tipo de dificuldade– e no comércio varejista (71,9%) e de veículos, peças e motocicletas (70,4%).
“Tem fornecedor que está demorando o dobro para entregar, que manda uma parte e a outra vem depois, coisa que não era costumeira, existia uma entrega mais regular”, relata Jorge Dib, diretor da Univinco (União dos Lojistas da Rua 25 de Março e Adjacências) e do Depósito de Meias São Jorge.
Segundo Dib, os lojistas da 25 de Março, na região central de São Paulo, também têm enfrentado dificuldades na entrega de embalagens, particularmente em papelão. Ele avalia que a origem do problema está na indústria, que enfrenta falta de matéria-prima em alguns casos e está trabalhando com pessoal reduzido, por conta do distanciamento social nas empresas.
Conforme a Folha mostrou no domingo (30), vários setores da indústria têm enfrentado falta de suprimentos, como aço e resinas plásticas, e aumento de custos, em meio à alta do dólar, queda da produção de insumos devido à pandemia e retomada da manufatura mais rápida do que o esperado.
No varejo de autopeças, o problema não é só de atraso nas entregas, mas de falta de produtos.
“Existe um gargalo logístico por conta da parada da economia chinesa durante quatro meses no primeiro semestre”, afirma Francisco De La Tôrre, presidente do Sincopeças-SP, que representa 27 mil lojas de autopeças no estado.
“Isso está se refletindo agora: o mundo voltou a operar, a recuperação está sendo mais rápido do que se esperava, então há um problema de fornecimento e de aumento de preços, por conta do câmbio. Alguns grupos de autopeças têm aumento de até 30% até julho.”
Segundo De La Tôrre, essa alta de custos está sendo absorvida pela cadeia. “Todos os players –varejo, atacadistas, importadores e fabricantes– estão abrindo mão de margens, porque não temos um consumidor em condição de absorver esses aumentos, estamos diante de um consumidor mais pobre.”
A inflação ao consumidor segue contida, em alta de 2,31% em 12 meses até julho, segundo o IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo). Já no atacado, os custos estão em alta, com o IGP-M (Índice Geral de Preços ao Mercado), que é composto em 60% pelos preços ao produtor, acumulando avanço de 13,02% em 12 meses até agosto.
O descompasso entre os dois índices é um indicativo dessa perda de margem das empresas relatada pelo representante do setor de autopeças. Mas há temor de que, com a melhora da atividade esperada para 2021, a alta de preços do atacado seja repassada aos consumidores, elevando a inflação.
No comércio de calçados, o medo é o de que falte produto para as vendas de fim de ano.
“Estamos com um problema seríssimo, os representantes da indústria estão nos ligando e, além de eles estarem com turno reduzido, estão com problemas de matéria-prima, com preços subindo e alguns componentes em falta”, diz Leonardo Annichinno, diretor da Ablac (Associação Brasileira de Lojistas de Artefatos e Calçados) e das Lojas Esporte Total, que tem sete unidades em Capivari e Piracicaba, no interior paulista.
“Estamos fazendo pedidos normalmente, mas as entregas já estão todas para dezembro. Precisamos do sapato no comecinho daquele mês, mas muitos não estão garantindo a entrega, então acredito que pode haver falta de produtos no fim de ano.”
Segundo o IBGE, o problema enfrentado pelos varejistas revela um descompasso na capacidade de retomada do comércio e da indústria.
“Quando o isolamento é flexibilizado, as vendas respondem rápido, mas a capacidade de fornecer não se ajusta no mesmo ritmo”, disse o analista do IBGE Alessandro Pinheiro. “A gente vê aí um problema de abastecimento, que foi provocado pelo choque. O choque atingiu primeiro o lado da demanda e depois foi para o lado da oferta.”
Ainda assim, o instituto não avalia que seja uma questão estrutural, com impactos significativos no processo de retomada da economia após o período mais duro da pandemia.
A última pesquisa de confiança do varejo feita pela CNC (Confederação Nacional do Comércio) ainda aponta estoques elevados no setor, mas a entidade admite que gargalos na produção de insumos e mercadorias pela indústria podem estar dificultando a reposição, principalmente em pequenas empresas.
Segundo Izis Ferreira, economista da CNC, pelo poder de compra, as grandes redes varejistas acabam sendo beneficiadas nos pedidos à indústria e o pequeno varejo, que já costuma trabalhar com estoques mais reduzidos, acaba enfrentando atrasos nas entregas. “Existe um gargalo aí que está aos poucos sendo desfeito.”
No geral, porém, pelo levantamento da confederação, o sentimento do varejista é o de que o nível de estoques hoje está acima do adequado, reflexo das semanas de portas fechadas no período mais duro da pandemia. A última sondagem da CNC aponta que 35,1% dos entrevistados convivem com estoques altos. Em março, antes da pandemia, eram 22,2%.
Apesar das dificuldades de fornecimento, a pesquisa Pulso Empresa do IBGE mostra de maneira geral um quadro de melhora na percepção das companhias em relação aos seus negócios.
Na segunda quinzena de julho, 37,5% das empresas relatavam sofrer impactos negativos da pandemia sobre suas atividades, abaixo dos 44,8% da quinzena anterior e dos 70% da primeira edição da pesquisa, referente à primeira quinzena de junho.
“A gente vê trajetória de melhora quinzena a quinzena”, disse o gerente da pesquisa do IBGE, Flávio Magheli.
O número de entrevistados que disse ter sofrido impacto negativo nas vendas caiu de 46,8% para 34,4% entre as duas quinzenas de julho. Já o contingente daquelas que enfrentaram dificuldade para efetuar pagamentos de rotina passou de 47,4% para 38,9%.
O instituto ressalta, porém, que a evolução é heterogênea e depende do nível de abertura de cidades e estados. No Centro-Oeste, onde o pico da pandemia ocorreu mais tarde, por exemplo, 41% das empresas dizem ter vendido menos no período pesquisado. Já no Sudeste, esse percentual cai para 32%.
“Cada região está numa fase diferente na retomada gradual das atividades econômicas, passando de um controle mais restrito para um normal controlado. E obviamente isso se reflete na maior capacidade de fornecer produtos e também da capacidade de receita e gasto das próprias famílias”, comentou Magheli.