Recentemente sancionada com vetos, a Lei 14.232/2021 institui a Política Nacional de Informações Estatísticas Relacionadas à Violência contra a Mulher – PNAINFO, que deve levar à criação de um registro nacional unificado de dados sobre violência contra a mulher no país.
Entre as diretrizes aprovadas, a norma determina a inserção do quantitativo de mortes violentas de mulheres no registro nacional, e permite que órgãos estaduais e municipais participem da PNAINFO e destinem dotações orçamentárias para custeá-la. A lei é oriunda do substitutivo ao PLS 8/2016, de relatoria da senadora Daniella Ribeiro (PP-PB), aprovado em setembro no Senado.
Conforme o texto, o Registro Unificado de Dados e Informações sobre Violência contra as Mulheres será composto por dados administrativos referentes ao tema, sobre serviços especializados de atendimento às mulheres em situação de violência e sobre políticas públicas da área.
O registro permitirá a coleta de dados individualizados sobre as vítimas e o agressor, além da compilação de mortes violentas. Devem ser registrados local, data, hora e descrição da agressão, o meio utilizado e perfis da vítima e do agressor (idade, raça/etnia, deficiência, renda, profissão, escolaridade, procedência de área rural ou urbana e relação entre eles).
De acordo com a nova lei, também deve constar um histórico de ocorrências envolvendo a vítima e o agressor, as medidas protetivas requeridas e concedidas para a mulher e a relação de atendimentos médicos, sociais, policiais e judiciais que ela já tenha recebido. Os estados, o Distrito Federal e os municípios poderão aderir à PNAINFO mediante instrumento de cooperação federativa, conforme dispuser o regulamento.
Sistematização de dados
Para a advogada Adélia Moreira Pessoa, presidente da Comissão Nacional de Gênero e Violência Doméstica do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, a lei consolida e sistematiza normas esparsas já previstas em legislações anteriores. “Sabe-se que a ausência de sistematização de dados estatísticos adequados sobre o alcance da violência dificulta a elaboração de políticas sociais de enfrentamento à situação nefasta de violência doméstica.”
Segundo Adélia, é preciso reforçar a necessidade de dados em todos os espaços. “Pitágoras, na antiguidade, já dizia: ‘Os números governam o mundo’. William Thompson (Lord Kelvin), no século XIX, afirmava: ‘Se você medir aquilo de que está falando e expressar em números, você conhece alguma coisa sobre o assunto; mas, quando você não o pode exprimir em números, seu conhecimento é pobre e insatisfatório’. Max Planck, considerado o pai da física quântica, completa: ‘Real é só o que se pode medir’”.
Para a especialista, é urgente que se tenham dados adequados, sistematizados e unificados nacionalmente, que compreendam as nuances e os desdobramentos da violência doméstica “e o que está sendo feito para mitigar esta pandemia, muito anterior à Covid 19”. Segundo ela, os dados atuais são dispersos, e muitas vezes não conferem.
“Tive a oportunidade de observar, em uma pesquisa feita logo após a vigência da Lei Maria da Penha (11.340/2006), que as ocorrências de uma dada Comarca tinham inúmeras incongruências conforme a origem. Dados da Delegacia, do Instituto Médico Legal – IML e do Judiciário apresentavam divergências. Várias normas já foram expedidas sobre a necessidade de dados sobre violência e o dever de serem coletados”, ressalta a advogada.
Adélia lembra que a Constituição da República Federativa do Brasil, em seu artigo 226 § 8º, estabelece que o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. “Ressalte-se ainda, que a pesquisa de dados e criação de indicadores é uma das principais orientações da Quarta Conferência Mundial sobre as Mulheres realizada em Pequim, com a presença do Brasil, em 1995.”
“Pelo artigo 8º alínea h da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher - Convenção de Belém do Pará, ratificada pelo Brasil em 1996, e, portanto, parte de nosso Direito, comprometeu-se o Estado Brasileiro a adotar medidas específicas, inclusive programas para garantir a pesquisa e coleta de estatísticas e demais informações pertinentes sobre as causas, consequências e frequência da violência contra a mulher, com o objetivo de avaliar a eficácia das medidas para prevenir, punir e eliminar a violência contra a mulher e de formular e aplicar as mudanças que sejam necessárias’”, destaca a especialista.
A advogada observa que a Lei Maria da Penha estabeleceu, em vários artigos, diretrizes da política pública que visam coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Dentre elas, no artigo 8º II – “a promoção de estudos e pesquisas, estatísticas e outras informações relevantes, com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia, concernentes às causas, às consequências e à frequência da violência doméstica e familiar contra a mulher, para a sistematização de dados, a serem unificados nacionalmente, e a avaliação periódica dos resultados das medidas adotadas”.
“Ainda prevê, no artigo 38: ‘As estatísticas sobre a violência doméstica e familiar contra a mulher serão incluídas nas bases de dados dos órgãos oficiais do Sistema de Justiça e Segurança a fim de subsidiar o sistema nacional de dados e informações relativo às mulheres. Parágrafo único. As Secretarias de Segurança Pública dos Estados e do Distrito Federal poderão remeter suas informações criminais para a base de dados do Ministério da Justiça’”, ressalta a presidente da Comissão Nacional de Gênero e Violência Doméstica do IBDFAM.
Ela acrescenta: “E mais: no artigo 38-A: ‘O juiz competente providenciará o registro da medida protetiva de urgência. E o Parágrafo único. As medidas protetivas de urgência serão registradas em banco de dados mantido e regulamentado pelo Conselho Nacional de Justiça, garantido o acesso do Ministério Público, da Defensoria Pública e dos órgãos de segurança pública e de assistência social, com vistas à fiscalização e à efetividade das medidas protetivas. (Incluído pela Lei nº 13.827/2019).”
“A Lei Maria da Penha, desde 2006, já estabelecia, em seu artigo 26, que ‘caberá ao Ministério Público, sem prejuízo de outras atribuições, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher III - cadastrar os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher”, complementa a advogada.
Segundo Adélia, do ponto de vista formal, já está devidamente reconhecida em normas jurídicas a necessidade de pesquisas e dados sobre a violência doméstica e familiar. “Entretanto, as leis no Brasil se repetem na medida de sua inefetividade. É preciso atenção redobrada para a concretização da nova lei.”
“Há necessidade de integração dos órgãos responsáveis pela política de enfrentamento à violência, pelo engajamento dos três poderes, do Ministério Público, e dos entes da federação no monitoramento da questão, contando com a participação da sociedade civil, inclusive universidades e entidades não governamentais, como o IBDFAM, na construção de um banco de dados unificado que reflita a realidade da violência sofridas pelas mulheres no Brasil e as consequentes políticas públicas de enfrentamento adequado à violência de gênero”, conclui a advogada.
Segundo ela, percebe-se a falta de dados fidedignos compreendendo todo o fluxo da violência, desde sua ocorrência, passando pelos atendimentos de flagrante delito pela Polícia Militar ou, se inexistentes flagrantes, Boletins de Ocorrência e inquéritos nas delegacias, especializadas ou não, atuação do Judiciário, desde as Medidas Protetivas de Urgência – MPU até decisão final condenatória (ou absolutória), atendimentos psicossociais (tanto para vítima como para o autor, através de Grupos Reflexivos) e em serviços de saúde. “Precisamos trabalhar pela materialização desta lei e a Comissão de Gênero e Violência Doméstica do IBDFAM estará atenta a isso.”
Vício de inconstitucionalidade
O texto, que havia sido aprovado em 2016 no Senado, foi posteriormente alterado pela Câmara, com a retirada da menção da palavra “gênero”. A definição de violência contra mulher passou de "ato ou conduta baseado no gênero" para "ato ou conduta praticados por razões da condição de sexo feminino". Para Adélia, a mudança revela “o horror de alguns parlamentares” ao termo.
O conceito, porém, foi vetado pelo presidente da República. De acordo com o Executivo, a proposta alteraria a definição de violência contra a mulher prevista na Lei Maria da Penha, de maneira "a não contemplar os danos moral ou patrimonial sofridos".
Adélia observa que a redação inicial do PLS quando apresentado, em 2015, pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado – CDH, transcrevia o conceito do artigo 1 da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher: “Para os efeitos desta Convenção deve-se entender por violência contra a mulher qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado”.
“Sem dúvida, a Lei Maria da Penha já define as formas de violência de gênero, no seu artigo 7º, com maior amplitude, abrangendo a violência moral e patrimonial, como se encontra nas razões do veto. Mas a norma só abrange a violência doméstica e familiar, e a violência em razão de gênero abarca também a violência no âmbito público, sem quaisquer vínculos com o âmbito doméstico”, reconhece a especialista.
Mas ela pondera: “Se a redação do parágrafo vetado coincide com o contido no artigo da Convenção de Belém do Pará, que integra o Direito brasileiro, desnecessária a sua repetição na lei e, assim, sou favorável à manutenção do veto, não apenas pelas razões alegadas”
O projeto aprovado pelo Senado também previa que a PNAINFO contaria com um comitê integrado por representantes dos três Poderes que acompanharia a implantação da política, com coordenação de um órgão do Executivo federal. Mas o governo vetou esse trecho por “vício de inconstitucionalidade ao estabelecer competência a órgão do Poder Executivo federal por meio de emenda parlamentar”. Para o governo, a medida é uma competência privativa do presidente da República.
“Com efeito, se comitê for órgão colegiado federal, a iniciativa da lei deve ser da Presidência da República como dispõe a Constituição Federal, em seu artigo 61- § 1º: São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que: II - disponham sobre (...) e) criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública”, frisa Adélia. Segundo ela, o vício de iniciativa pode ser suprido por um projeto a ser encaminhado pela Presidência da República para a criação do referido comitê, por ser apenas vício formal.
Os vetos serão analisados em sessão do Congresso Nacional.