O último domingo, 21 de março, foi marcado pelo Dia Mundial da Infância, data que ressalta a importância de assegurar direitos e oportunidades necessárias para o pleno desenvolvimento das crianças. Consagrada nos direitos fundamentais inscritos na Constituição Federal de 1988 e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (8.069/1990), a proteção integral às crianças e adolescentes enfrenta desafios em cenário de pandemia, um tema pulsante e caro ao Direito da Infância.
“Na nossa construção de Direitos, a criança deixou de ser objeto e passou a ser sujeito de direito, sendo-lhe assegurado o direito de ter suas necessidades – físicas, cognitivas, psicológicas, emocionais e sociais – atendidas de forma integral e integrada, ficando a família, o Estado e a sociedade incumbidos desse dever”, aponta a advogada Melissa Telles Barufi, presidente da Comissão Nacional de Infância e Juventude do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM.
Ela acrescenta: “A criança tornou-se indivíduo central no contexto familiar, ou seja, sua casa transformou-se num espaço de afetividade. A partir de então, a criança passou a ser vista como indivíduo de investimento afetivo, econômico, educativo e existencial”. De acordo com a especialista, o Brasil passou a demonstrar efusivamente essa preocupação em 1988, quando assumiu o compromisso com a doutrina da proteção integral.
Desde então, sobreveio uma caminhada, de muitas leis protetivas infraconstitucionais que foram e estão sendo promulgadas, entre elas: Lei n. 8.069/90, Estatuto da Criança e Adolescente – ECA, diploma fundamental que eleva as crianças e adolescentes à condição de sujeitos de direitos; Lei nº 10.406/2002, Código Civil de 2002, que colocou o poder gerencial dos filhos menores a ambos os pais, sendo denominado como poder familiar; Lei 12.318/2010, que tipifica atos de Alienação Parental; Lei 13.058/2014 - lei da guarda compartilhada; Lei 13.257/2016, que dispõe sobre as políticas públicas para a primeira infância, alterando alguns dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente, do Código de Processo Penal, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), para sua efetividade; Lei 13.010/2014, Lei da Palmada para estabelecer o direito da criança e do adolescente de serem educados e cuidados sem o uso de castigos físicos ou de tratamento cruel ou degradante. Essa lei também é conhecida como a lei Menino Bernardo; Lei 13.431/2017 instituiu o depoimento especial (conhecido depoimento sem dano); e a Lei 13.811/2019, que alterou o art. 1520 do Código Civil brasileiro. Proibindo o casamento de menores de 16 anos.
“Essa caminhada de ampliação de Direitos e Proteção demonstra uma mudança de pensamento, que veio sendo esculpido e, hoje, está alicerçado na sociedade brasileira que nos exige, agora, lutarmos pela efetivação plena e concretização do desenvolvimento amplo das crianças e adolescentes”, comenta.
Ausência de efetivação
Melissa Telles Barufi pontua que, embora no Brasil as crianças sejam consideradas sujeitos de direito e contem com ampla legislação protetiva, na prática o desafio que se enfrenta é que seus direitos são violados de forma significativa, ante a ausência de implementação e efetivação.
“Estudos indicam que o Brasil possui as maiores taxas de violência contra crianças e adolescentes em todo o mundo, dentre violência física e emocional. Com este viés, o que podemos resumir é que o Brasil atende às mais rigorosas legislações internacionais no aspecto da proteção à criança e adolescente, partindo do referencial da Proteção Integral, mas na prática, ainda, estamos distantes da efetiva garantia dos preceitos da prioridade absoluta dos menores”, avalia.
Segundo a especialista, alguns países têm se preocupado com a qualidade com que as legislações são elaboradas e o impacto que terão na vida prática, seja no cotidiano das pessoas - o respeito que elas terão pelas regras -, seja na aplicação pelos juízes, nos litígios. No Brasil, porém, a noção de qualidade da lei ainda é pouco difundida. “Nem de longe se mostra desejável a adoção de métodos adequados de identificação de problemas e muito pouco, ou quase nada, se faz em relação à avaliação dos impactos resultantes de sua adoção.”
“Salientando que esta ‘qualidade’ deveria ser perseguida não só pelo Congresso Nacional, responsável pela elaboração da legislação federal, mas também pelas Assembleias Legislativas estaduais, pela Câmara Legislativa do Distrito Federal e pelas mais de cinco mil Câmaras Municipais existentes no país. A parte de pensar a efetivação da lei é a ponte que liga a garantia dos direitos e a efetivação de forma ampla e absoluta, o que engloba esforços dos entes públicos e todo o sistema de proteção, além da implementação de políticas públicas com enfoque prioritário na criança e no adolescente, conforme claramente estipulado no art. 4º, par. único, alínea “c” c/c 87, incisos I e II), do ECA”, frisa.
Impactos da pandemia
A presidente da Comissão Nacional de Infância e Juventude do IBDFAM observa que, com o isolamento social - procedimento necessário e adotado por quase todos os países do mundo para conter a disseminação do Covid-19 - muitos foram os impactos na seara da Infância e Juventude. “Podemos listar o impacto social, emocional, intelectual, sem falarmos dos desafios de enfrentamento da violência intrafamiliar e das garantias dos Direitos Infanto-juvenis.”
“Com as escolas fechadas e o ensino on-line, surgem as discrepâncias de acesso, fazendo com que milhares de crianças fiquem à margem do ensino escolar. Somado a isto, não podemos esquecer que em muitos lares brasileiros os responsáveis não detêm condições de estarem presentes durante as aulas transmitidas, nem mesmo para acompanhar as tarefas extraclasse, fazendo com que o ensino tenha baixo rendimento. A ausência dos responsáveis no ambiente residencial, faz com que crianças de distintas idades fiquem abandonadas em casa, muitas vezes por longos períodos de tempo. Eis que as crianças e adolescentes passam a ser tolidos de ensino de qualidade, bem como estão sujeitos aos perigos diários, ante a ausência dos responsáveis. Somente neste pequeno recorte, já verificamos direitos que são massacrados”, exemplifica.
A advogada menciona também a violência intrafamiliar - quando crianças e adolescentes ficam à mercê dos humores dos pais, inseridos em ambientes de relações violentas. “Com um dos pilares mais importantes ausente, a escola, surge um elemento que contribui para o aumento no índice de violência, haja vista que muitos relatos de abusos e agressões sobrevêm no meio escolar e, sem esse mecanismo, as crianças e adolescentes se manterão mais isolados da proteção estatal e mais próximas aos agressores.”
“O afastamento social, de distintos núcleos que a crianças e adolescente fazem parte, como escolar, familiar, clubes e atividades extraclasses, acabam reduzindo a interação social e gerando pessoas mais introspectivas, tímidas e de baixa autoestima. O impacto emocional pode ser avaliado na esfera intrafamiliar e extrafamiliar”, explica.
Para ela, a pandemia foi, e segue sendo, utilizada como fundamento e justificativa para afastar crianças e adolescentes de núcleos familiares, primários ou extensos, sob o pretexto de proteção e contenção da doença. “Sem sombra de dúvidas, o afastamento de convivência repercutirá na esfera emocional das crianças e adolescentes, alargando distância afetiva e rompendo com milhares de vínculos de carinho e amor. Neste ponto, de igual modo, vale destacar as questões de disputas de guarda e dificuldades de convivência, que se ampliaram no curso de 2020, ante a intolerância e ausência de bom-senso entre os pais.”
Perspectivas para o futuro
Melissa prevê uma dualidade de cenários possíveis para o contexto pós-pandemia, ante as mudanças que surgiram devido às restrições impostas como forma de combate à Covid-19. “Sobrevieram mudanças significativas que podem e devem ser perpetuadas, como o incentivo às convivências virtuais, utilizadas como complementação aos momentos presenciais entre crianças e adolescentes e seus familiares, somado à cultura de responsabilidade e empatia que deve ser transmitida aos infantes, como mecanismo de cuidar de si e do próximo, desenvolvendo uma nova forma de condução de atitudes.”
“Porém, temos um cenário cinza que merecerá cuidado e atenção de todos os profissionais que atendem as demandas da criança e adolescente. São perspectivas que provêm dos impactos sociais, emocionais e intelectuais, somado às quebras dos Direitos”. Entre elas, a especialista cita o recebimento de milhares de crianças e jovens que sofreram afastamento social e com redução na capacidade de interação; que se mantiveram afastados do ensino escolar, e/ou de baixo rendimento; que foram afastadas de convivências, que sofreram com rompimento de vínculos e laços; que sofreram o luto causado pela perda de um ente querido; e crianças que sofreram violência e maus tratos, ante um ambiente intrafamiliar abusivo e doente.
“Assim, em um futuro próximo, muito mais do que hoje podemos perceber, teremos de trabalhar de forma transdisciplinar, atendendo as demandas através de uma percepção macro; lidando e reconstruindo pilares e direitos que foram surrupiados em distintas esferas de nossos sujeitos em desenvolvimento. Teremos, desta forma, muito trabalho para tecer novos futuros”, conclui a advogada.